domingo, 17 de agosto de 2008

Quando nascemos somos uma folha em branco - John Locke

O texto abaixo é uma adaptação do Ensaio sobre o entendimento humano, de John Locke:

É opinião incontestável para algumas pessoas que o homem, ao nascer, traz já em sua alma algumas idéias ou princípios inatos (que nascem conosco) ou noções comuns que ela carrega ao longo de sua vida.

Se meus leitores estivessem livres de preconceitos seria fácil para eu mostrar que os homens podem chegar a todos os seus conhecimentos sem recorrer a nenhuma noção inata, utilizando apenas as suas faculdades naturais. Posto que no meu entender seria impróprio supor inatas idéias das cores em uma criatura a quem Deus deu a vista e o poder de receber estas idéias através dos olhos a partir dos objetos externos. E não seria menos irracional atribuir a certos caracteres inatos o conhecimento que temos de muitas verdades, quando notamos que podemos explicá-las através de um processo natural de aprendizagem.

Não há opinião mais comumente aceita de que existem certos princípios com os quais todos os homens concordam e daí se deduz que estão desde sempre marcados em nossa alma. princípios nasceram conosco... Mas o pior é que este argumento do consenso universal sobre certos princípios me parece uma prova do fato contrário: de que não existe nenhum princípio inato, posto que não existe nenhum sobre o qual universalmente todos os homens estejam de acordo.

Alguém poderia argumentar contra nós: “quem discordaria do princípio de identidade (“tudo o que é, é”) ou do princípio da não contradição (“é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo”)?” Mas eu afirmo que há quem desconheça tais noções: como o provam o exemplo das crianças e dos loucos. Afirmar que este possuem tais princípios sem saber é uma hipótese frágil desmentida pela prática de ambos.

No que diz respeito aos valores morais o desacordo de opiniões é ainda mais evidente. Desafio uma pessoa que conheça um pouco mais do que o seu próprio umbigo, isto é, que possua um conhecimento mínimo sobre a história dos povos para me indicar um único princípio moral que seja seguido igualmente por todos os povos (ainda que baste sair do nosso próprio bairro para notar o desacordo geral dos homens sobre a correta moral). Além disso seria absurdo e ridículo supor que um princípio moral não pode ser contestado, pois se não se pode contestá-lo, ou seja, exigir que ele apresente suas razões, isto é, se justifique, ele nem pode ser chamado moral. Isto porque só podemos chamar de moral um valor que o indivíduo escolhe livremente de forma justificada, porém, se um princípio nasce conosco não temos escolha, somos forçados pela nossa própria natureza a segui-lo, não temos escolha nem liberdade. Aliás, se algum princípio moral fosse natural, inato, simplesmente não teríamos como violá-lo, assim como não podemos contrariar a nossa fisiologia.

Só para dar alguns exemplos: Em alguns povos os filhos matam seu pai e sua mãe, sem nenhum remorso, quando eles chegam a uma idade determinada. Por acaso não existiram nações inteiras, inclusive as mais civilizadas, que julgaram permitido rejeitar seus filhos e deixá-los morrer de fome ou devorados por animais ferozes? Ainda hoje existem países em que os recém-nascidos são enterrados vivos junto com sua mãe quando esta morre no parto? Certos povos do Peru comiam os filhos que faziam com suas prisioneiras e faziam o mesmo com estas quando paravam de ter filhos. Entre os índios (“brasileiros”) Tupinambas só se concedia a honra de chegar ao paraíso àquelas pessoas que se vingassem dos seus inimigos e os devorassem em um banquete ritual. Qualquer um que estude de forma imparcial a história do gênero humano vai ser obrigado a reconhecer que não existe nenhum princípio moral seguido universalmente, pois é facilmente possível encontrar várias sociedades espalhadas no tempo e no espaço que seguiram princípios opostos e que chamariam de vício o que chamamos de virtude e vice-versa.

Suponhamos então que a mente, ao nascermos, é uma tabula rasa, uma folha em branco sem nada escrito. De que modo receberá as idéias? Donde e como as adquiri na prodigiosa variedade que a imaginação humana sempre atinge numa diversidade quase infinita? Donde extraiu suas certezas e razões? Da experiência: este é o fundamento de tudo o que sabemos; aí está a sua origem primeira. As observações que fazemos seja sobre os coisas do mundo, seja sobre o que temos em nossa mente, a respeito do que refletimos, abastecem a nossa inteligência de todos os materiais do pensamento.

sábado, 16 de agosto de 2008

A fé e a ciência de Galileu



(Este texto reproduz trechos da carta enviada por Galileu a seu amigo o padre Benedito Castelli)
Segundo Galileu, a Bíblia e a investigação científica sobre a natureza não podem se contradizer, já que tanto a natureza quanto a bíblia têm origem no verbo divino. No entanto, como explicar os recorrentes conflitos entre a pesquisa científica e a palavra bíblica? Para Galileu eles são frutos de um equívoco, pois, "embora as Escrituras não possam se enganar, os seus intérpretes podem”. (Galileu) E isto acontece se quisermos ler a bíblia sempre literalmente, cometendo, desse modo, diz o cientista, inúmeras blasfêmias, como por exemplo: “atribuir a Deus sensações e emoções físicas típicas do homem, como ódio, rancor, além do esquecimento das coisas passadas e até a ignorância de coisas futuras”. Para Galileu, a bíblia foi escrita em uma linguagem adaptada e simbólica, para ser acessível aos conhecimentos rudes do povo da época. A natureza, ao contrário, este livro que Deus escreveu diretamente, sem o auxílio e a “tradução” dos homens, deve ser “lida” literalmente através de experimentos racionais.
Por essas razões, diz Galileu, devemos impedir que certos intérpretes da palavra divina
digam que a bíblia ensina tudo o que há para se saber no universo. Não apenas porque não temos certeza sobre quais intérpretes foram ou não inspirados por Deus, mas por que Deus não nos daria bens como a inteligência e os sentidos para nós abandoná-los antes de aprender a ler o grande livro que Ele mesmo escreveu: a natureza. É evidente que o objetivo central das Sagradas escrituras é nos guiar para a salvação de nossa alma (o que não é assunto para a ciência, pois está para além dos nossos sentidos), e não explicar os eventos naturais, o que se nota pelo fato Delas abordarem este assunto de modo irrelevante e fragmentário (nem o nome dos planetas lá encontramos). A investigação científica portanto deve nos ajudar a complementar a mensagem da bíblia (devidamente interpretada, separando o que é literal do que é apenas simbólico e metafórico). E assim, lendo os dois livros de Deus (a bíblia e a natureza) reverenciar sua obra completa.
O método científico proposto por Galileu tem por objetivo impedir que nos equivoquemos na interpretação do livro da natureza. Para isso, é necessário estudar prioritariamente as qualidades principais (ou objetivas) da natureza (o movimento, a grandeza, a forma, a quantidade; qualidades iguais para todos), e não confundi-las com as qualidades secundárias ou subjetivas(impressões que variam dependendo de cada pessoa, de cada animal, e da situação em que ela percebe as coisas: a cor, o sabor, o som, o odor etc.). Como se pode notar, as qualidades principais são aquelas que podem ser descritas pela matemática, ou melhor, pela física-matemática. Diz Galileu que estas qualidades subjetivas ou secundárias não são propriedades das coisas, mas sim meros efeitos dos estímulos que as qualidades objetivas ou principais (estas sim das coisas)provocam em nós. Ou seja, as qualidades secundárias só existem em quem percebe, não no mundo. E ele completa:”os corpos externos com suas formas, movimentos etc. Provocam em sons, cores e sabores etc., no entanto, se eliminarmos ouvidos, línguas e narizes permanecem no mundo aquelas qualidades principais, mas desaparecem estas qualidades secundárias”. Mas como separar as qualidades subjetivas das objetivas, afinal de contas, os homens só conseguem percebê-las misturadas em sua experiência cotidiana? Segundo Galileu, o único caminho é o experimento científico em laboratório, quando tentamos responder a questões precisas retiradas da observação, com auxílio de hipóteses e testes.
O estudo das qualidades secundárias ou subjetivas precisará esperar o aparecimento, sobretudo, das ciências humanas.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Deus entre a superstição e a razão

No Dia de Todos os Santos, sagrado feriado religioso católico que no ano de 1755 caíra no 1º de novembro, a terra tremeu e Lisboa desabou. O pior terremoto da história européia ainda foi seguido por um maremoto e por um incêndio de seis dias, provocado pelo fogo das numerosas velas que enfeitavam as casas e altares da cidade em homenagem ao feriado.
Voltaire se impressionou com o evento. Não apenas com as proporções do desastre, mas sobretudo com a explicação que alguns religiosos lhe deram. A catástrofe seria expressão da vontade divina que assim punia os lisboetas pelos seus pecados. Voltaire não se convencia, segundo ele esta explicação era incompatível com a idéia de um Ser supremo bondoso e racional: “Por que Deus puniria apenas os portugueses famosos pela sua devoção e não os outros europeus?” “Por que puniria uma população inteira, em vez de poupar pessoas corretas e inocentes, crianças, idosos etc.?” Diriam os religiosos que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Ou seja, que Deus faz o melhor para nós mesmo quando achamos que fomos injustamente prejudicados. Mas Voltaire insistiria: “Por que um ser perfeito precisa provocar um sofrimento humano incompreensível?” Para Voltaire, existem três caminhos para enfrentar esta questão: Deus quer impedir o mau e não pode, ou pode e não quer, ou nem quer e nem pode. Mas, se quer e não pode, não é Deus (pois não seria, neste caso, onipotente); se pode e não quer, não é bom, o que é contrário a Deus. “Se quer e pode, o que é a única coisa compatível com a divindade, então qual é a razão da origem de males como esse?” O acaso?: uma combinação casual de fatores naturais (geológicos e marítimos) e fatores sociais (a construção de uma metrópole a beira-mar, prédios muito altos e próximos etc.)? Por que não? Para Voltaire precisamos ter a coragem de, por um lado, não achar que temos resposta para tudo, nem achar que não podemos entender nada (e é o que fazemos quando dizemos: “é a vontade de Deus” e encerramos nossas perguntas e inquietações), tampouco supor que as coisas sempre vão bem. “Dizer que algum dia tudo ficará bem – é nossa esperança. Tudo vai bem sempre, eis a nossa ilusão”.
Será esclarecedor atribuir tudo à vontade de Deus, mesmo os acontecimentos mais absurdos? Não seria estranho um Ser perfeito criar um ser (o homem) que precisa de correções, castigos, como se esta criatura tivesse saído da linha traçada pelo plano por Deus, surpreendendo o criador? Essas perguntas revelavam inconsistências na imagem tradicional que se faz de Deus, o que levou alguns filósofos como Voltaire a aderir ao deísmo, que também era seguido por Locke. O deísmo é, em geral, uma concepção acerca de Deus que se assenta em pelo menos uma das seguintes teses: 1) Existe um Deus criador, mas uma vez criado o mundo, ele não tem qualquer intervenção no curso dos acontecimentos; 2) Existe um Deus criador, mas não existe qualquer espécie de revelação divina que nos diga o que é correto ou incorreto acerca da nossa conduta moral, bastando para isso consultar livremente a razão humana; 3) Existe um ser supremo criador, mas esse ser não é o Deus revelado pelas religiões. Para o deísmo deus criou as leis que governam automaticamente o mundo natural, mas Ele não intervém mais no mundo depois da criação.
Cabe perguntar: se todos os homens (a maioria, pelo menos) são racionais, como explicar que a maioria tenha adotado uma idéia tão defeituosa a respeito do criador? Como nasce a superstição que contamina a nossa racionalidade?
O filósofo holandês Espinosa (1632-77) talvez seja o que nos dê a resposta mais radical para estas perguntas. Segundo ele, a superstição faz parte da condição humana e pode nos fornecer conforto diante das incertezas que nos angustiam e/ou nos aprisionar em um mundo de medo criado por nós mesmo. Ela nasce de um preconceito, ou seja, uma idéia sem fundamento, uma conclusão sem premissas. Sempre existirá algum preconceito, porque sempre haverá algo que ignoramos, no entanto ele só se torna prejudicial quando nos faz pensar que “já aprendemos tudo que tínhamos para aprender”.
A superstição é fruto do medo de não alcançar os bens que desejamos ou de sermos atingidos por males futuros, mas também da esperança de atingir esses bens ou evitar esses males. A outra raiz da superstição é a crença de que as forças que organizam, controlam nossas vidas está fora do mundo, são transcendentes e regem nossos destinos de uma forma incompreensível à razão humana. Esse papel pode ser atribuído aos astros, a deus ou a qualquer outra “força superior”.
Ainda segundo Espinosa, existe um pai de todos os outros preconceitos. O homem tem o mal hábito de julgar que o mundo funciona e age da mesma forma que ele próprio, como se o mundo se espelhasse no homem. Assim, como os homens sempre agem motivados por finalidades, o homem supõe por analogia que todo o mundo e todos os seres que o habitam só existem e agem em função de uma finalidade; e, como ele encontra no mundo várias coisas que lhe são úteis, conclui que tudo que Deus criou tem por finalidade servir ao homem.
Segundo Espinosa, além da grande arrogância de julgar que as coisas do mundo só têm valor como instrumentos para a satisfação humana, este preconceito de se espelhar em si mesmo para explicar o outros e o mundo, levou a uma visão supersticiosa da divindade, baseada na imagem que o homem tem de si mesmo. Para explicar a criação de um mundo a seu próprio serviço, o ser humano precisou imaginar um ser supremo que age e conduz as coisas da mesma maneira que nós próprios faríamos: foi o homem que criou este Deus à sua imagem e semelhança. Espinosa, no entanto, não é uma ateu, tampouco um deísta (como Voltaire), pelo contrário, ele se considerava religioso. Sua filosofia se propõe a mostrar racionalmente a existência de Deus, um ser eterno que se identifica com a natureza, ou seja não houve criação, a natureza sempre existiu e é simplesmente sinônimo de Deus. Não se trata aqui de estudar a filosofia de Espinosa, mas de apontar mais algumas suas idéias úteis para a nossa discussão. Para ele a conseqüência desta idéia de um ser supremo que tudo fez para o homem é que este deve em troca lhe manifestar sua gratidão e honrá-lo. Assim nascem os cultos, que servirão para conquistarmos a afeição deste Deus para que deste modo Ele nos seja favorável e dirija a natureza para saciar nossos desejos.
Deste modo, se por um lado, a superstição dá uma resposta reconfortante a nossas incertezas, por outro lado, acaba gerando mais medo, pois nunca sabemos exatamente qual seria a maneira mais correta de cultuar a Deus. As religiões seriam criadas para resolver esta dúvida atemorizante, pois elas instauram um grupo de homens especiais encarregados de realizar os cultos, receber revelações ou profecias do ser supremo e interpretar as vontades secretas Dele. No entanto, o sacerdote ou o teólogo poderá sustentar o poder da superstição, aterrorizando o fiel com o medo da punição. Aproveitando-se da ignorância e do terror.
Tanto Espinosa quanto Voltaire, por diferentes caminhos, tentaram formular um conceito de Deus que fosse compatível com os nossos maiores bens: a razão e a liberdade.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A loucura segundo Erasmo


Por dentro do Elogio da loucura

Erasmo, com seu Elogio da loucura, livro que é um misto de sermão ácido, sátira honesta e brincadeira com compromisso ético, estabelece um marco para o homem moderno. A ironia do seu elogio aparece já nas primeiras páginas: "Já que a raça humana insiste em ser completamente louca - já que todas as pessoas, do Papa ao mais humilde padre de aldeia - do mais rico dos homens ao mais miserável dos mendigos - da honrada dama em suas sedas e cetins à mulher vulgar em seu vestido de chita - já que todos se decidiram firmemente a não usar o cérebro que Deus lhes deu, mas insistem em se deixar guiar inteiramente pela ambição, vaidade, ignorância, por que motivo, em nome de uma divindade racional, deveriam as poucas pessoas realmente inteligentes perder seu tempo e esforço, tentando mudar o gênero humano, transformando-o em algo que ele jamais desejou ser? Deixemo-lo viver feliz em suas loucuras. Não o privemos daquilo que, lhe dá maior prazer - seu infinito poder de se tornar ridículo." No Elogio da Loucura, Erasmo argumenta que são os desejos tolos e irracionais que fazem girar o mundo. O livro é um discurso da boca da própria Loucura que se dirige a uma platéia imaginária composta de homens de todas as classes e condições. Usando uma beca de doutor, mas com um barrete de bobo na cabeça, a Loucura sobe ao palco, seguida por seus ajudantes: o Amor-Próprio, o Esquecimento, a Preguiça, o Prazer, a Sensualidade, o Sono Profundo, a Intemperança e a Demência. A Loucura nos conta que é filha de Plutão (ou Hades, deus do submundo) e de uma encantadora criatura chamada Juventude, e que foi criada por duas ninfas sedutoras: Embriaguez, filha de Baco (ou Dioniso, deus do vinho e da música), e Ignorância, filha de Pã (ou do Fauno, deus dos bosques e rebanhos). Na violenta sátira que se segue, Erasmo, falando através da loucura, ridiculariza praticamente todas as instituições, costumes, homens e crenças de seu tempo, inclusive o casamento, a guerra, o nacionalismo, os advogados, cientistas, acadêmicos, teólogos, soberanos e papas. A Loucura afirma que, sem sua ajuda, a sociedade não sobreviveria. Nenhum homem ou mulher de bom senso se arriscaria a casar e a ter filhos, a não ser inspirados pela Loucura e a ela, portanto, deviam a vida, "os arrogantes filósofos e os reis em sua púrpura, os padres piedosos e os papas triplamente santos." "Que fase da vida não é triste, desagradável, desairosa, monótona e penosa", pergunta a Loucura, "a menos que seja acrescido o prazer, isto é, um tempero de loucura?" Enquanto os homens mais sábios, de mais sensatez são considerados desgraçados, os tolos e os idiotas são mais felizes, sem as tormentas e medo dos males, sem as angústias de milhares de preocupações às quais nos submete a vida". Até mesmo as mais altamente respeitadas profissões muito devem à Loucura, pois a medicina é sobretudo, charlatanice, e a maioria dos advogados é de trapaceiros. E mais:quanto maior a habilidade dos governos em ludibriar o povo, mais bem sucedidos eles serão.
Alguns dos ataques mais contundentes de Erasmo dirigem-se a supostos sábios empenhados em explicar aquilo que está além do alcance da razão humana: "Como deliram deslumbrados, como se fossem os enviados especiais da natureza criadora ou tivessem descido até nós do Conselho dos Deuses! Enquanto isso a Natureza, magnificamente, ri-se deles e de suas conjecturas!" Erasmo apresenta cada busca da humanidade como sendo apoiada pela Loucura. No teatro: "Destrua-se a ilusão e qualquer peça perde o sentido". Os caçadores "sentem inefável prazer íntimo quando escutam o rouco toque das trombetas e o ladrar dos cães... e haverá algo mais encantador do que um animal sendo esquartejado?" Igualmente iludidos estão aqueles que se lisonjeiam além da conta com os desprezíveis títulos de nobreza. Um, encontrará as raízes de sua família em Enéias, outro em Brutus, e um terceiro até no Rei Artur. Em cada sala exibem retratos e bustos de seus antepassados". Da mesma forma, o comerciante, labutando por dinheiro, o poeta buscando imortalidade, o guerreiro sonhando grandeza, os jogadores, cujos "corações pulam e começam a bater rapidamente" ao ouvir o chocalhar dos dados - estes e muitos outros têm suas vidas governadas pela Loucura. Grande parte do Elogio da Loucura é dedicada ao discurso da Loucura sobre a igreja e a doutrina Cristã. A irreverência com os nomes e textos bíblicos fizeram, na época, com que Erasmo fosse acusado de escarnecedor e ateu, apesar de ele nunca ter abandonado a fé católica. Nenhum membro da hierarquia da Igreja escapa ao tratamento satírico da pena de Erasmo, embora seu alvo especial fossem os monges: "Os monges não saber ler um sinal de santidade. Zurram os salmos nas igrejas como asnos. Não entendem uma só palavra do que dizem, mas imaginam ser o som agradável aos ouvidos dos santos. Os frades mendicantes fingem assemelhar-se aos Apóstolos, mas não passam de vagabundos imundos, ignorantes e ousados." Erasmo satiriza o esplendor e o mundanismo dos papas, cardeais e bispos, contrastando-os com a simplicidade do Pescador da Galiléia (Ver Mateus 4:18). Considera ridículas e absurdas as loucuras das superstições e da adoração dos santos. "Mas, que direi", pergunta Erasmo, "das pessoas que, com tanta felicidade, se enganam com os perdões forjados de seus pecados? Esses tolos se convencem de que podem comprar todas as bênçãos e prazeres desta vida, como também o céu, depois da morte, e, por puro amor ao lucro imundo, os padres encorajam-nos em seus erros". Nesta passagem Erasmo ataca a venda de indulgências (absolvição dos pecados mediante pagamentos), prática que só será abandonada pela Igreja católica após a crise da reforma protestante.

Grande foi a coragem de Erasmo para expor a corrupção da Igreja de seu tempo, a mais forte e poderosa organização da época. Apesar de sutis e indiretos, seus ataques eram extremamente eficientes. Segundo Stephan Zweig: "No Elogio da Loucura existia, debaixo de sua máscara carnavalesca, um dos livros mais perigosos de seu tempo, um daqueles que se nos apresentam como um inteligente fogo de artifício; e foi, na verdade, uma bomba cuja explosão abriu o caminho para a Reforma protestante e para a transformação da própria igreja católica”

Alguns trechos do Elogio:

"As pessoas admiram com prazer maior o que menos compreendem, pois a sua vaidade está nisso interessada. Assim riem, aplaudem, abanam as orelhas como burros, para mostrarem deste modo que compreenderam perfeitamente."
"Toda a gente vê no rei um homem opulento e poderoso. Porém, se não possuir nenhuma qualidade espiritual, nada lhe pertence, é mesmo infinitamente pobre, e, se está sujeito ao domínio dos vícios, é apenas o mais vil dos escravos. Se os atores estão em cena desempenhando o seu papel e um deles tenta arrancar as máscaras para mostrar ao público a sua verdadeira face, conseguirá apenas perturbar toda a representação e deveria ser expulso do teatro como louco. Pois a donzela da peça surgiria aos vossos olhos como um homem; o jovem transformar-se-ia num velho; o rei num escravo e o deus num miserável humano. Destruída toda a ilusão, a obra destrói-se. Era o figurino e o disfarce que atraíam o espectador. O mesmo acontece na vida, que não passa duma comédia, em que cada qual representa o seu papel, conforme a máscara que usa, até que o contra-regra o faz sair de cena. Este, de resto, confia ao mesmo ator papéis muito diversos, de modo que aquele que antes se revestia da púrpura de um rei reaparece agora sob os trapos de um escravo. Por todo o lado só existe o disfarce, e a comédia da vida representa-se do mesmo modo."
"Como são felizes os teólogos quando exercem sua atividade e quando descrevem com minúcia o inferno, como se aí tivessem passado anos."
"Haverá algum de vós tão louco que deixe na rua o ouro e as jóias? Ninguém, decerto. Encerrá-los-eis no canto mais secreto e retirado da casa e nos cofres mais bem fechados e guardados. O lixo, porém, é deitado para a via pública. Ora, se o que se tem de mais precioso é que se esconde e o que há de mais vil se expõe à luz do dia, a Sabedoria, que não se esconde, é mais vil do que a Loucura, que nos aconselham a esconder."
"Haverá pelos deuses imortais, espécie mais feliz que os homens a quem o vulgo chama loucos, parvos, imbecis, cognomes belíssimos, na minha opinião? Esta afirmação poderá a princípio parecer insensata e absurda e no entanto, nada há de mais verdadeiro. Tais homens não receiam a morte e, por Júpiter! isso já não representa pequena vantagem! A sua consciência não os incomoda. As história de fantasmas não os aterrorizam, nem os afeta o medo das aparições e espectros, nem os males que os ameaçam ou a esperança dos bens que poderão vir a receber. Nada, em resumo, os atormenta, isentos dos mil cuidados de que a vida é feita. Ignoram a vergonha, o medo, a ambição, a inveja e chegam mesmo, se são suficientemente estúpidos, a gozar o privilégio, segundo os teólogos, de não cometerem pecados."

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Apostar em Deus é racional? Duas respostas contemporâneas à aposta de Pascal


"Consideremos este ponto e digamos o seguinte: “Ou Deus existe ou não existe.” Mas qual das alternativas devemos escolher? A razão não pode determinar nada: existe um infinito caos a nos dividir. No ponto extremo desta distância infinita, uma moeda está sendo girada e terminará por cair como cara ou coroa. Em que você aposta?"
Blaise Pascal, Pensamentos (edição póstuma, 1844)

A atualidade do de Pascal argumento segundo um teólogo
A aposta de Pascal
O matemático, físico e filósofo Blaise Pascal (1623-1662), um dos pensadores mais exemplares dos desafios do pensamento moderno, depois de uma profunda experiência espiritual, escreveu uma "Apologia da Religião Cristã". Ela deveria responder às objeções da época de forma cabal e irrefutável. Não conseguiu seu intento, pois, muito doente, morreu com a idade de apenas 39 anos em 1662 em Paris. Deixou somente anotações e pensamentos dispersos que vêm sob o título "Pensées", "Pensamentos", apreciados até os dias de hoje.
Depois de tentar todo tipo de argumento em favor da fé, deu-se conta, de forma honrada, de que nenhum deles era cabalmente convincente. Foi então que forjou o famoso argumento da "aposta".
No parágrafo 233 de seus "Pensées", Pascal colocou a seguinte questão: "Deus existe ou não existe". Sustenta que a razão pode encontrar tanto argumentos a favor quanto contra a existência de Deus. Deste modo não se consegue determinar uma resposta convincente. Como sair desse impasse? É ai que Pascal afirma: "é necessário apostar". Você não tem escapatória porque, uma vez que suscitou a questão, você se encontra "embarcado nela", diz ele. A razão não sai humilhada pelo fato de ter que a apostar. A aposta apresenta a seguinte vantagem: "ou você tem tudo a ganhar ou você não tem nada a perder". Portanto, a aposta é racional.
Se você afirmar "Deus existe" e Ele de fato existe, você tem tudo a ganhar, a vida e a eternidade.Se você afirmar "Deus não existe" e Ele de fato não existe, você não tem nada a perder: o sentido da vida e eternidade eram meros devaneios. Então é racional, aconselhável e justo que você afirme "Deus existe" e assim você tem tudo a ganhar.
Qual á a atualidade da "aposta pascaliana" para os dias atuais? Culturamente a questão não é mais posta em termos de "se Deus existe ou não", mas em termos: Que futuro tem o planeta Terra e a vida se tomarmos a sério os alarmes dados recentemente por cientistas renomados? Há galáxias que engolem outras galáxias. Que sentido tem o universo que pela lei da entropia, inevitavelmente, caminha para a morte térmica? Tem sentido a vida humana depois da experiência dos campos de extermínio nazista e da tsunami do sudoeste da Asia? Tem sentido o destino das grandes maiorias submetidas à fome, a todo tipo de exploração, com crianças estupradas e mulheres submetidas à escravidão sexual?
Somos desafiados também a apostar: apostamos que apesar de todas as contradições, trabalha um sentido secreto no universo. Ele um dia vai se manifestar e será a suprema felicidade da criação e assim ganhamos tudo. A luz tem mais direito que as trevas. Ou então tudo não passa de absurdo e a felicidade é ilusória e acabaremos todos no pó cósmico e assim não perdemos nada quando deixamos de acreditar.
Vale então apostar, numa atitude de confiança e de entrega radical (é o sentido bíblico de fé) de que o mundo é salvável e o ser humano resgatável a ponto de descobrir a irmandade universal até com as formigas do caminho. Apostando nisso, teremos tudo a ganhar aqui e na eternidade.
Leonardo Boff, autor do artigo, é teólogo e escritor.
A aposta de Pascal segundo um ateu
De acordo com Pascal, de um jeito ou de outro, todos nós jogamos dadinhos com Deus, mesmo ele não jogando dados com o Universo.
Pascal admitiu que é impossível “provar” que Deus existe – de fato, afirmou ele, a razão humana é incapaz de provar qualquer coisa com certeza. Isso daria a pensar que Pascal era agnóstico, mas não é verdade. Afinal, para ele, a principal pergunta residia no fato se convinha a alguém acreditar na existência de Deus, e sua resposta era que você seria tolo se não acreditasse. Ele tentou mostrar matematicamente que seria um péssimo negócio não acreditar em Deus.
A matemática que Pascal empregou trabalhava no campo das Probabilidades, que ele ajudou a inventar. Bom, no modo de ver de Pascal, a crença ou a descrença que você possa ter em Deus exige uma aposta.
Ora, se Deus existe e a “Sagrada Escritura” são verdadeiros, sua crença vai dar-lhe infinita felicidade após a morte. Se Deus não existe, tudo o que você teria a perder acreditando no dito cujo seriam os prazeres finitos de uma vida finita. Mesmo porque, ainda que as chances da existência de Deus fossem próximas de zero – Pascal sugere que elas estão perto de 50 % – a única coisa racional que você pode fazer é jogar o jogo, pois qualquer percentagem finita de infinito tende a ser infinita também, o raciocínio mediante este conceito mostra que você deve acreditar em Deus.
Indo pelo outro lado da moeda, se você se recusar a acreditar em Deus e estiver errado, você será condenado às penas infernais, pois será um pecador. E tomando por base que as probabilidades que isso aconteça são enormes, não restaria nada mais a você do que seguir Deus.
E claro que você poderia ainda resistir à razão, mas isso só aconteceria se você permitisse que seus desejos e paixões sufocassem o que você tem de melhor. De acordo com nosso amigo Pascal, os desejos podem ser controlados se você proceder como se acreditasse em Deus e participar de bons rituais cristãos. E se você se acostuma com isso, termina por descobrir que, largando seus hábitos pouco saudáveis, você fica até mesmo mais feliz que antes e isso, na visão de Pascal, é o verdadeiro pagamento da aposta.
O argumento de Pascal pode soar “arrumadinho”, mas devemos imaginar que ele era um grande matemático e sabia trabalhar com números infinitos, e como tal processo acaba por se tornar uma tarefa ardilosa. Pela lógica de Pascal, você seria levado à busca de qualquer promessa de felicidade infinita, religiosa ou não, como a coisa mais racional a ser feita, em caso de haver uma remota chance de sucesso. (Digamos que exista 1% de probabilidade de que a Fonte da Juventude exista; você deveria largar tudo agora e ir em busca dela).
Muito bem, para que a Aposta de Pascal funcione, você tem que tomar como certas muitas das coisas que ele quer provar – que, se Deus existe, Ele é infinito, onisciente, onipotente, e o verdadeiro autor da Bíblia. Mas, naturalmente, existe um número infinito de outras possibilidades – por exemplo, que Deus exista mas não ligue muito para o comportamento das pessoas ou (o mais danoso para o argumento de Pascal) que Deus exista mas não seja realmente um ser infinito. Ainda há o caso de que Deus exista, mas é totalmente diverso de tudo que se imaginou a respeito dele, parecendo-nos tão estranho quanto nossos pensamentos, sensações e desejos seriam estranhos ao olhar de uma ameba. E ninguém (muito menos Pascal) poderia provar que uma dessas descrições de Deus seja mais acertada do que outra. Mesmo porque, ninguém andou batendo um papinho com o Todo-Poderoso nos últimos milênios.
Voltando ao assunto, é muitíssimo mais difícil agir com base em crenças que você não têm (por mais razoáveis que sejam) do que Pascal gostaria de admitir. A razão não é o único motor das nossas ações e das nossas crenças. E, além disso, supõe-se que Deus haveria de saber se você estava sendo sincero ou só jogando, afinal ele é onisciente, certo?
No âmbito da natureza humana, prazeres certos geralmente prevalecem sobre os incertos, por mais sedutores que sejam estes últimos. No calor da paixão, possibilidades infinitas podem vir a parecer bem irrelevantes. A crença em alguém que lhe proverá de bênçãos e presentes mostra que, no fundo, se trata de um raciocínio em que as pessoas acreditam para ter algo em troca. O que justifica a frase de Einstein: “Se as pessoas são boas só por temerem o castigo e almejarem uma recompensa, então realmente somos um grupo muito desprezível.”

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Da incoerência de nossas ações - Montaigne



Da incoerência de nossas ações
Em Ensaios, Michel de Montaigne; Ed. Abril Cultural, 1980, pp. 159-162)
Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo. Mário, o Jovem, ora parece filho de Marte ora filho de Vênus. Dizem que o Papa Bonifácio VII assumiu o papado como uma raposa, conduziu-se como um leão e morreu como um cão. E quem diria que Nero, essa verdadeira imagem da crueldade, como lhe apresentassem para ser assinada, de acordo com a lei, a sentença contra um criminoso, observou: – Prouvera a Deus que eu não soubesse escrever! – tanto lhe apertava o coração condenar um homem à morte. Há tantos exemplos semelhantes, e tão facilmente os encontrará sozinho quem quiser, que estranho ver por vezes gente de bom senso procurando juntar tais contradições, mesmo porque a irresolução me parece ser o vício mais comum e evidente de nossa natureza, como o atesta este verso de Públio, o satírico: “Má opinião, a de que não se pode mais mudar.” É aparentemente possível julgar um homem pelos fatos mais comuns de sua vida; mas, dada a instabilidade natural de nossos costumes e opiniões, pareceu-me muitas vezes que os melhores autores erravam em se obstinar a dar de alguém uma idéia bem assentada e lógica. Adotam um princípio geral e de acordo com este ordenam e interpretam as ações, tomando o partido de as dissimular quando não as deformam para que entrem dentro do molde preconcebido. O imperador Augusto escapou-lhes; deparamos nesse homem com uma tal flagrante diversidade de ações, tão inesperada e contínua no decurso de sua existência, que os mais ousados juízes, renunciando a julgá-lo em seu conjunto, tiveram de deixá-lo assim indefinido. Acredito que a constância seja a qualidade mais difícil de se encontrar no homem, e a mais fácil a inconstância. Quem os julgasse pormenorizadamente de acordo com seus atos, um por um, estaria mais apto a dizer a verdade a seu respeito. Fora difícil encontrar em toda a antigüidade uma dúzia de homens que tenham orientado sua vida em obediência a determinado princípio, o que é o fim principal da sabedoria. A qual, segundo um autor antigo [Sêneca], se resume em uma frase que enfeixa, em uma só, todas as regras da vida: “querer e não querer são sempre a mesma e a única coisa”. E poderia acrescentar: à condição de que o que queremos ou não queremos seja justo, pois, se não o é, impossível se faz que permaneça constantemente a mesma coisa. Efetivamente, sei de há muito que o vício nada mais é senão desregramento e falta de medida e por conseguinte não o podemos imaginar constante. Atribui-se a Demóstenes a seguinte máxima: a virtude, qualquer que seja, consiste de início em recolhimento e deliberação; a constância, a seguir, comprova-lhe a perfeição. Em refletindo seguimos sempre o melhor caminho, mas ninguém pensa antes de agir. “Desdenha o que pediu, volta ao que largou e, sempre hesitante, contradiz-se sem cessar” (Horácio). Nossa maneira habitual de fazer está em seguir os nossos impulsos instintivos para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, segundo as circunstâncias. Só pensamos no que queremos no próprio instante em que o queremos, e mudamos de vontade como muda de cor o camaleão. O que nos propomos em dado momento, mudamos em seguida e voltamos atrás, e tudo não passa de oscilação e inconstância. “Somos conduzidos como títeres que o fio manobra” (Horácio). Não vamos, somos levados como objetos que flutuam, ora devagar, ora com violência, segundo o vento: “Acaso não vemos todo mundo indeciso; uns procurando sem descontinuar, outros mudando de lugar, como para largar uma carga pesada demais?”(Lucrécio). Cada dia nova fantasia, e movem-se as nossas paixões de acordo com o tempo: “o pensamento dos homens assemelha-se na terra aos cambiantes raios de luz com que Júpiter a fecunda”(Cícero). Hesitamos em tomar partido; nada decidimos livremente, de maneira absoluta, coerente. Se alguém traçasse e estabelecesse determinadas leis de conduta e regime político de vida, veríamos brilhar em seus atos e atitudes uma harmonia cabal e em seus costumes uma ordem e uma correlação evidentes. Empédocles observa a seguinte contradição entre os agrigentinos: alguns se entregam aos prazeres como se devessem morrer no dia seguinte e outros edificam como se a vida não tivesse de acabar jamais. O plano de vida fora entretanto fácil de se estabelecer, como se vê em Catão, o Jovem: quem nele toca uma tecla, toca todas, pois há nele uma harmonia de sons bem afinados que nunca se entrechocam. Não seguimos, nós outros, tão sábio exemplo e cada uma de nossas ações decorre de um juízo específico. E na minha opinião seria melhor procurar-lhes as causas nas circunstâncias do momento sem mais aprofundada pesquisa e sem tirar delas quaisquer conseqüências. Durante as desordens que agitaram nosso pobre país, disseram-me que uma jovem, bem perto do local onde eu me encontrava, se jogara pela janela a fim de escapar à brutalidade de um soldado que hospedava. Não teve morte instantânea e para se acabar tentou cortar o pescoço com uma faca, o que não a deixaram fazer. Nesse triste estado, confessou que o soldado nada mais fizera do que lhe declarar seu amor, solicitá-la e presenteá-la, mas ela temera que chegasse a violentá-la. Daí seus gritos, sua atitude, o sangue derramado, como se se tratasse de uma nova Lucrécia. Entretanto, eu soube que antes e depois dessa ocorrência sempre se mostrou muito menos arisca. Como dizem por aí, “por mais belo e decente que sejas, se não és aceito pela tua amada, não concluas, sem mais amplas informações, ser ela de uma castidade a toda prova; isso não impede que o arrieiro tenha a sua possibilidade”. Antígono, que se afeiçoara a um de seus soldados por causa de sua valentia e coragem, mandou que o médico tratasse de uma doença que o atormentava havia muito. Observando, após a cura, que o homem se expunha muito menos nos combates, perguntou qual a razão dessa mudança que o tornara poltrão: “Vós mesmo, Sire, porquanto me libertastes dos males que faziam com que eu não apreciasse a vida.” Um soldado de Luculo fora roubado pelo inimigo. Para se vingar executou contra ele um golpe de mão notável, amplamente compensador de seus prejuízos. Luculo que ficara com excelente opinião dele quis empregá-lo em uma arriscada expedição e, afim de decidi-lo, usava todos os meios de persuasão, “com palavras capazes de entusiasmar os mais tímidos”(Horácio). Mas o soldado atalhou: “Mandai algum soldado miserável que tenha sido roubado.” E recusou peremptoriamente. Como diz Horácio: “Irá quem tiver perdido a bolsa.” Maomé II admoestara violentamente Chasan, chefe de seus janízaros cuja tropa fora desfeita pelos húngaros, sendo que se conduzira ele próprio covardemente durante o combate. Como única resposta, Chasan, sozinho, sem precisar de ninguém, precipitou-se furioso, espada na mão, contra o primeiro pelotão inimigo que percebeu e desapareceu em poucos instantes como se fora por ele tragado. Nesse ato, parece que foi movido menos pelo desejo de se reabilitar do que em virtude de uma reviravolta em seus sentimentos: Não agia sob o impulso da coragem moral e sim por despeito. Quem ontem vistes tão temerário, não vos espanteis em vê-lo poltrão no dia seguinte. A cólera, a necessidade, a companhia ou o vinho, ou o som de uma trombeta, terão feito de suas tripas coração. Não foi o raciocínio que lhe deu coragem: foram as circunstâncias. Não nos espantemos, pois, de ver que mudou ao mudarem elas. Essa variação e essa contradição, tão comuns em nós, levaram muitas pessoas a pensar que possuímos duas almas, ou duas forças que atuam cada qual num sentido, uma no sentido do bem e outra no do mal. Uma só alma e uma só força não poderiam conciliar-se com tão repentinas variações de sentimentos. Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em conseqüência da instabilidade da posição em que esteja. Quem se examina de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de mim de diversas maneiras é porque me olho de diferentes modos. Todas as contradições em mim se deparam, no fundo como na forma. Envergonhado, insolente, casto, libidinoso, tagarela, taciturno, trabalhador, requintado, engenhoso, tolo, aborrecido, complacente, mentiroso, sincero, sábio, ignorante, liberal e avarento, e pródigo, assim me vejo de acordo com cada mudança que se opera em mim. E quem quer que se estude atentamente reconhecerá igualmente em si, e até em seu julgamento, essa mesma volubilidade, essa mesma discordância. Não posso aplicar a mim um juízo completo, sólido, sem confusão nem mistura, nem o exprimir com uma só palavra. “Distingo” é o termo mais encontradiço em meu raciocínio. Embora acredite sempre que é preciso falar bem do que é justo e interpretar com simpatia o que a tal juízo se presta, nossa condição é tão singular que não raro o próprio vício nos impele a bem fazer (se o bem não se julgasse unicamente pela intenção que o determina). Daí não se dever tirar de um ato corajoso a conclusão de que um valente o praticou. Valente será efetivamente quem o for sempre em todas as ocasiões. Se fosse um hábito e não u gesto imprevisto, a virtude faria que um homem mostrasse sempre igual resolução; seria o mesmo, só ou acompanhado, na justa como no campo de batalha. Suportaria esse homem, com igual atitude uma enfermidade em seu leito e um ferimento na guerra e não temeria mais a marte em seu lar do que em um assalto. Não o veríamos lançar-se através de uma brecha com insopitável bravura e em seguida chorar como uma mulher a perda de um processo ou de um filho; ser covarde diante da infâmia e resoluto na miséria, ter medo da navalha do barbeiro e desafiar a espada do adversário. Em tais casos, a ação é louvável, não o homem. Há gregos, diz Cícero, que tremem à vista do inimigo e se mostram tenazes quando enfermos, e tem-se o inverso nos cimbros e nos celtiberos: “Nada pode ser estável se não parte de um princípio sólido”(Cícero). Não há maior valentia, no gênero, do que a de Alexandre, o Grande, e no entanto não se verifica em tudo. Por incomparável que seja, tem suas falhas, o que o faz perturbar-se à mais insignificante suspeita de conjuras e o leva a incrível e absurda crueldade na repressão e a temores em nada compatíveis com sua apreciação habitual das coisas. A superstição que lhe era peculiar participa também da pusilanimidade, e a exagerada penitência que se impõe a si mesmo após o assassínio de Clito prova igualmente a desigualdade de sua coragem. Somos um amontoado de peças juntadas inarmonicamente e queremos que nos honrem quando não o merecemos. A virtude vale por si mesma; se para outro fim tomamos a sua máscara, logo ela no-la arranca da cara. Quando nossa alma se impregna dela, forma ela uma espécie de verniz fortemente adesivo que só se tira com a própria pele. Eis por que para julgar um homem é preciso seguir suas pegadas, penetrar sua vida, e se não deparamos com a constância alicerçando seus atos, “com um plano de vida bem ponderado e previsto”(Cícero), se sua marcha, ou antes, seu caminho (pois é lícito acelerar ou diminuir o passo) se modifica segundo as circunstâncias, abandonemo-lo. Como a ventoinha gira de acordo com o vento, assim reza a divisa de nosso Talbot. Não é de espantar, diz um autor antigo, que o acaso tenha tanta força sobre nós, pois por causa dele é que existimos. Quem não orientou sua vida, de um modo geral, em determinado sentido, não pode tampouco dirigir suas ações. Não tendo tido nunca uma linha de conduta, não lhe será possível coordenar e ligar uns aos outros os atos de sua existência. De que serve fazer provisão de tintas se não se sabe que pintar? Ninguém determina do princípio ao fim o caminho que pretende seguir na vida; só nos decidimos por trechos, na medida em que vamos avançando. O archeiro precisa antes escolher o alvo; só então prepara o arco e a flecha e executa os movimentos necessários; nossas resoluções se perdem porque não temos um objetivo determinado. O vento nunca é favorável a quem não têm um porto de chegada previsto. Não estou de acordo com o juízo que se fez, ao assistir a uma tragédia de Sófocles, declarando-o, contra a opinião de seu filho, capaz de administrar seus bens. Não acho tampouco muito mais lógico o que fizeram os párias enviados com missão de reformar o governo dos milésios. Depois de visitar a ilha, observando o cultivo cuidadoso da terra, a boa ordem das propriedades, e registrando os nomes dos proprietários, considerando que a atenção e a eficiência demonstradas na administração de seus negócios particulares eram uma garantia de que de igual modo iam gerir os negócios do Estado. Somos todos constituídos de peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós mesmos quanto entre nós e outrem: “Crede-me, não é coisa fácil conduzir-se como um só homem”(Sêneca). Se a ambição pode impelir o homem a ser valente, sóbrio, liberal e mesmo justo, se a avareza pode dar coragem a um caixeiro criado no ócio e na indolência e infundir-lhe bastante confiança para que se lance à aventura em frágil navio, à mercê de Netuno, e lhe ensina a discrição e a prudência; se a própria Vênus arma de resolução a audácia o jovem ainda sob a autoridade paterna, e faz com que se mostre impudica a virgem de coração terno ainda sob a égide de sua mãe:
“Passando furtivamente entre os guardas que dormem, protegida por Vênus, vai a jovem sozinha, dentro da noite, juntar-se a seu amante”(Tibulo), se assim é, não deve um espírito refletido julgar-nos pelos nossos atos exteriores; cumpre-lhe sondar as nossas consciências e ver os móveis a que obedecemos. É uma tarefa elevada e difícil e desejaria por isso mesmo que menor número de pessoas se dedicassem a ela.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008


O relativismo de Montaigne

“Os homens (diz uma antiga máxima grega) são atormentados pelas idéias que têm das coisas, e não pelas próprias coisas. Haveria um grande ponto ganho para o alívio da nossa miserável condição humana se pudéssemos estabelecer essa asserção como totalmente verdadeira. Pois, se os males só entraram em nós pelo nosso julgamento, parece que está em nosso poder desprezá-los ou transformá-los em bem. Se as coisas se entregam à nossa mercê, por que não dispomos delas ou não as moldarmos para vantagem nossa? Se o que denominamos mal e tormento não é nem mal nem tormento por si mesmo, mas somente porque a nossa imaginação lhe dá essa qualidade, está em nós mudá-la. E, tendo essa escolha, se nada nos força, somos extraordinariamente loucos de bandear para o partido que nos é o mais penoso e dar às doenças, à indigência e ao desvalor um gosto acre e mau, se lhes podemos dar um gosto bom e se, a fortuna fornecendo simplesmente a matéria, cabe a nós dar-lhe a forma. Porém vejamos se é possível sustentar que aquilo que denominamos por mal não o é em si mesmo, ou pelo menos que, seja ele qual for, depende de nós dar-lhe outro sabor e outro aspecto, pois tudo vem a ser a mesma coisa. Se a natureza própria dessas coisas que tememos tivesse o crédito de instalar-se em nós por poder seu, ele se instalaria exactamente da mesma forma em todos; pois os homens são todos de uma só espécie e, excepto por algo a mais ou a menos, acham-se munidos de iguais orgãos e instrumentos para pensar e julgar. Mas a diversidade das idéias que temos sobre essas coisas mostra claramente que elas só entram em nós por mútuo acordo: alguém por acaso coloca-as dentro de si com a sua verdadeira natureza, mas mil outros dão-lhes dentro de si uma natureza nova e contrária.” (Ensaios)

A tolerância religiosa da perspectiva de Voltaire


Não Matarás - a tolerância por Voltaire
Por ANDRÉ BARATA
Voltaire faz da tolerância um projecto universal: "O turco, meu irmão? O chinês, meu irmão? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida."
A 10 de Março de 1762, na cidade de Toulose, um homem é torturado, supliciado na roda até à morte para, finalmente, o seu cadáver ser lançado ao fogo. Assim se cumpria a condenação sentenciada, no dia anterior, pelo Parlamenlo local. Supostamente, fazia-se justiça contra um monstro que enforcara o próprio filho, jovem mártir que apenas pretendera converter-se ao catolicismo numa terra de católicos, contra a vontade de um pai calvinista. O assassínio, a ter de facto ocorrido, revelava-se ainda mais hediondo, pois não poderia ter sucedido sem o conluio da mãe, de um dos irmãos e de um amigo da vítima.
Infelizmente, este caso não difere de muitos outros, nem sequer pelo facto de três anos mais tarde a França inteira ter reconhecido a inocência do condenado, de nome Jean Calas, homem trabalhador, negociante, respeitado pela comunidade, pai de seis filhos, um dos quais aliás já era católico antes da morte do irmão. O que se tornou digno de registo não foi tanto o erro da justiça, nem sequer o horror da prática da tortura, mas aquilo que realmente motivou a condenação de um homem inocente: a intolerância religiosa. Doutro modo, sem que a obstinação e o fanatismo de alguns não traduzisse, sob a capa do fazer-se justiça, a mais bárbara perseguição religiosa, o "affaire" Jean Calas não representaria, ainda hoje, um marco na História de França. E para isso contribuiu decisivamente Voltaire, tomando a seu cargo a defesa da família Calas e batalhando por ela numa instância não judicial: a opinião pública.
Transformando este caso numa autêntica causa pública, Voltaire escreve em Dezembro de 1763, um ano após a morte de Jean Calas, o "Tratado sobre a Tolerância". Expõe aí as inconsistências do processo judicial e a brutalidade com que se chegou ao fatídico dia do suplício. Segundo Voltaire, ninguém ficaria indiferente "quando o velho, agonizando na roda, tomou Deus por testemunha da sua inocência e lhe pediu perdão para os juízes." Nem sequer os próprios juízes, que, perante morte tão pungente, foram incapazes de aplicá-la aos restantes autores do crime. Contraditoriamente, ilibaram Madame Calas e o seu filho Pierre, como se assim não devolvessem, à luz da consciência, a inocência ao pai. Para que não restassem dúvidas sob a real natureza do crime de Jean Calas e da sua família, os três filhos protestantes foram retirados à mãe e enclausurados em conventos católicos, Pierre foi mesmo ameaçado com a mesma morte que coubera ao pai se não abjurasse.
O erro de justiça era óbvio, mas igualmente óbvio era reconhecer que o erro não resultara de negligência ou de precipitação, mas sim de praticar, agora que havia uma oportunidade, a intolerância religiosa. Mesmo o calendário convinha - aproximava-se o dia, escreve Voltaire, "desses singulares festejos que as gentes de Toulouse celebram todos os anos em memória de um massacre de quatro mil huguenotes; e 1762 era o ano de mais um centenário."
Neste quadro, o insurgimento do "philosophe" vai muito além das circunstâncias que envolveram o caso Calas. Lendo o Tratado assiste-se ao julgamento das instituições cristãs, mas em especial da Igreja Católica, pelo lado da acusação. O crime reside na intolerância e a prova percorre toda a História da Cristandade.
No seu "Dicionário Filosófico", Voltaire escreverá palavras duras como as que se seguem: "De todas as religiões, a cristã é, sem dúvida, a que deve inspirar mais tolerância, embora até aqui os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos os homens." Que seja "sem dúvida" uma coisa ou outra é discutível, mas importa esclarecer que o anticlericalismo de Voltaire em momento algum visa o texto bíblico. Pelo contrário, não são poucas as vezes que versículos de ambos os Testamentos são citados em prol da tolerância. Todo o empenho vai no sentido de que haja tolerância religiosa no seio da Cristandade, que "os diferentes cristãos devam tolerar-se uns aos outros", apenas isso. Voltaire chega a dirigir-se directamente a Deus - "faz com que aqueles que cobrem as vestes com uma tela branca, para assim dizerem que é preciso amar-te, não detestem os que dizem a mesma coisa debaixo de um manto de lã branca."
Por estas razões, só podem resultar equívocas afirmações como a de Evangelista Vilanova na sua monumental "História das Teologias Cristãs". Dizer que "Voltaire tende a reduzir todo o sentimento religioso à superstição ou ao fanatismo" induz o leitor a identificar o que é essencial distinguir: aquilo a que todos têm direito - as superstições - e aquilo a que ninguém tem o direito - o fanatismo. Como é sabido, Voltaire praticamente só vê superstição e convenção no Cristianismo, ele próprio milita do lado do deísmo e da "religião natural", mas quando o que está em causa é a criminalização do fanatismo se há algo que tem de ser tolerado isso é o credo de cada um e a superstição. "Não saltará aos olhos que ainda seria mais razoável adorar o santo umbigo, o santo prepúcio, ou o leite e as vestes da virgem Maria, do que execrar e perseguir o nosso irmão?" Este é um dos maiores méritos do Tratado e, seguramente, aquele que deve ser sublinhado várias vezes se se quiser compreender o anticlericalismo de Voltaire. Por muito feroz que seja a sua intervenção contra a Igreja, contra as suas instituições e a sua história, Voltaire, longe de pretender a sua destruição, exige-lhe a tolerância e a liberdade religiosas. E exige-o em nome do Estado laico e da lei pública.
Assim, se a tolerância deve dar lugar à intolerância deve podê-lo somente contra os fanáticos, precisamente aqueles que cometem o crime de perturbarem a sociedade. Segundo Voltaire, é o caso dos jesuítas, quando perseguem jansenistas e "vão lançar fogo a uma casa dos Pais do Oratório porque Quesnel, director da ordem, era jansenista." Tornam-se intoleráveis por serem intolerantes. O raciocínio é translúcido: se a Companhia de Jesus não respeita as leis do Reino, então que seja dissolvida. A intolerância não será muita para os jesuítas, far-se-ão cidadãos entre cidadãos obrigados à mesma lei e providos dos mesmos direitos. Na verdade, a intolerância não é nada que não se aplique a todos os cidadãos: o respeito pela lei. E este é o "único caso em que a intolerância é de direito humano."
No fim, quando "a discórdia é o grande mal do género humano e a tolerância o seu único remédio", quando este realismo pode mesmo assim ser animado pelo desejo utópico da fraternidade, Voltaire faz da tolerância um projecto universal. Diz então que: "não é preciso grande arte, eloquência muito rebuscada, para provar que diferentes cristãos devem tolerar-se uns aos outros. Mas vou mais longe: digo-vos que é preciso olharmos para todos os homens como irmãos. O quê? O turco, meu irmão? O chinês, meu irmão? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida." Esse deve ser o apanágio da humanidade.

Voltaire buscou testemunhos de figuras religiosas contra o fanatismo e a intolerância religiosas. “É um sacrilégio tirar, em matéria de religião, a liberdade aos homens, impedir que escolham uma divindade: nenhum homem, nenhum deus gostaria de um serviço forçado”, disse São Tertuliano. “A religião forçada não é mais religião;é preciso persuadir, e não coagir”, relata Lactâncio. “Nada é mais contrário à religião do que a coerção”, afirma São Justino. “A violência é capaz de gerar hipócritas; não se persuade quando por toda parte se fazem ressoar ameaças”, escreve Tillemont. “A fé não se incute a golpes de espada”, afirma Cerisiers.Enfim, daria um enorme livro mostrar a quantidade de apelos contra a intolerância e o uso da coerção na questão religiosa. Para Voltaire, “todo dogma é ridículo, funesto; toda coação baseada no dogma é abominável”. Ordenar a crer é absurdo.
Resumo e comentário de DOM QUIXOTE publicado pela editora Ática
Síntese da Obra
De tanto ler historias de cavalaria, um ingênuo fidalgo espanhol passa a acreditar piamente nos efeitos heróicos dos cavaleiros medievais e decide se tornar, ele também, um cavaleiro andante. Para tanto, recorre a uma armadura enferrujada que fora de seu bisavô, confecciona uma viseira de papelão e se auto-intitula Dom Quixote de La Mancha. Como todo cavaleiro, ele precisa de uma dama a quem honrar. Elege então uma lavradora que só conhece de vista e a chama de Dulcinéia.Depois de tomar essas providências, monta em seu decrépito cavalo Rocinante e foge de casa em busca de aventuras.
Após um dia inteiro de caminhada sob o sol, depara com uma estalagem, que em sua mente perturbada se converte num castelo, onde pede para ser ordenado cavaleiro pelo estalajadeiro, que quase não consegue conter o riso. No dia seguinte, ao investir contra o grupo de comerciantes que vê como adversários, cai de rocinante e tem seu corpo moído por pauladas. Um conhecido da aldeia encontra o cavaleiro, entre gemidos e lamentos, e o conduz novamente à sua casa.Seguindo aos conselhos do Pe. Tomás e do barbeiro Nicolau, a ama e a sobrinha queimam seus livros e lacram a porta da biblioteca.
Enquanto todos acham que a estratégia da destruição dos livros havia sido um sucesso, Dom Quixote, pensando tratar-se de uma magia de algum cruel feiticeiro, resolve voltar à aventura, agora acompanhado do escudeiro Sancho Pança: um ingênuo e materialista lavrador, que aceita seguir o fidalgo pela promessa de uma ilha para governar.
As viagens se sucedem sob a alucinação de quem está vivendo no tempo da cavalaria. Em suas andanças, Dom Quixote encontra moinho de vento que confunde com gingantes. Arremete contra um dos moinhos, cujas pás, devido a um vento mais forte, lançam o cavaleiro para longe.O escudeiro socorre seu mestre. Dom Quixote não dando o braço a torcer, diz que o feiticeiro, ao notar que o cavaleiro estava vencendo, transformou os gigantes em moinhos.
Mas adiante confundindo dois rebanhos de carneiros com exército de inimigos, avança contra os animais e mais uma vez é surrado, pelos pastores; além de ser pisoteado pelas ovelhas. No chão em meio ao estrume dos animais, ferido e desdentado, recebe do escudeiro a alcunha de O Cavaleiro da Triste Figura.
No desejo de combater as injustiças do mundo e homenagear sua dama, o nobre e patético personagem segue viagem enfrentando situações supostamente perigosas e sempre radículas: imagina gigantes em rodas-d`águas; vê um cavaleiro de elmo dourado em um barbeiro; ajuda criminosos a fugirem, pensando estar libertando escravos. De suas desventuras, restam-lhes sempre os enganos, as surras, as pedradas e as pauladas.
À beira da estrada, o cavaleiro da triste figura e seu fiel escudeiro encontram abrigo e deparam com o Pe. Tomás e o barbeiro Nicolau, amigos da aldeia onde moram e que estão à sua procura. Os dois convencem Sancho a ajudá-los e acabam levando, mais uma vez, e agora enjaulado, Dom Quixote para casa. Lá, cansado doente e abatido pelos reveses e pelas surras que levara, o fidalgo sossega. Até receber a visita do bacharel Sansão, que traz consigo um livro narrando As estranha aventuras de Dom Quixote. Com a fama, o cavaleiro tem seu espírito aventureiro revigorado e mais uma vez, convencendo Sancho Pança a companhá-lo, parte para a estrada, ainda guiado pelo amor de Dulcinéia, e pelo desejo de vencer o perverso feiticeiro e, com ele, as injustiças do mundo.
Em Toboso, à procura de sua amada, Dom Quixote encontra três lavradoras montadas em asnos, carregando repolhos para o mercado. Sancho diz que se trata de Dulcinéia e suas damas de companhia, tentando convencer Dom Quixote. Ao se ajoelhar diante de sua sonhada dama, o cavaleiro leva uma repolhada na cabeça. Sancho diz se tratar de um anel de esmeralda enfeitiçado em repolho, e Dom Quixote guarda a “prenda” na bolsa, duvidoso, todavia satisfeito.
Disfarçado em cavaleiro dos Espelhos, o baixinho Sansão desafia Dom Quixote, no intuito de levá-lo para casa e, com isso, agradar a sobrinha do fidalgo. Mas, traído por seu cavalo, que prefere comer grama ao duelar, perde o combate. Adiante, Dom Quixote encontra um duque e uma duquesa que, por já terem lido o livro com suas aventuras, resolvem se divertir à custa da dupla: disfarçado em feiticeiro Merlin, o duque inventa um suposto cavalo mágico de madeira que levaria Dom Quixote até o perverso feiticeiro. Vendam o cavaleiro e o escudeiro sobre a “mágica montaria” e chacoalham o cavalinho de balanço, enquanto os dois pensam estar voando. Ao atear fogo no rabo do cavalo, recheados de fogos de artifício, o cavaleiro e o escudeiro são lançados à distância.
Seguindo viagem, com mais alguns arranhões, Dom Quixote e Sancho Pança ouvem um grito assustador, É o cavaleiro da lua cheia (na verdade, Sanção, agora mais bem preparado e decidido). Que desafia O cavaleiro da Triste Figura: quem perder o combate terá de pôr fim à sua vida de cavaleiro andante. Sanção vence, o fidalgo volta ao lar. No final da história, recuperando a razão, Dom Quixote renuncia aos romances de cavalaria e morre como um piedoso cristão.



A razão crítica de Cervantes através da loucura de Dom Quixote
Frei Betto

“Dom Quixote”, o primeiro grande romance da literatura universal, está completando 400 anos. Dividido em duas partes, teve a primeira publicada em 1605, quando Cervantes andava pelos 57 anos. Obteve sucesso inesperado. Traduzida para o inglês em 1612, e para o francês em 1614, a obra atraía aos portos das Américas centenas de leitores ávidos por revistar as embarcações chegadas da Espanha à procura de um volume. Em 1615 Cervantes publicaria a segunda parte das aventuras do cavaleiro da Mancha. No ano seguinte, a 23 de abril, ele haveria de se encontrar com Shakespeare do outro lado da vida, pois os dois faleceram no mesmo dia.Toda obra de arte vale por sua beleza e não necessita de explicaçoes. Ela é polissêmica, isto é, possui múltiplos sentidos e cada pessoa a aprecia a partir de sua sensibilidade. Pois todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto. A sensibilidade, porém, não é uma qualidade que nasce conosco. Pode e deve ser apurada, acrisolada, refinada, de modo que se extraia da obra de arte o máximo proveito. O que para alguém são apenas dois pedaços de madeira cruzados ao acaso, para muitos é a cruz carregada de significado, símbolo de uma fé religiosa fecundada na história do Ocidente pelo sangue dos mártires.Sabemos também que todo texto é melhor compreendido quando situado dentro de seu contexto. O impacto que causa "Dom Quixote" provoca a curiosidade da razão, suscitando interrogações que nos impelem ao irresistível e difícil trabalho de escavar o texto, como quem contempla a imponência das pirâmides do Egito e se indaga como foi possível obra tão monumental quando ainda a roda não havia sido inventada. (...)O que sabemos, porque nos é dito pelo autor no próprio texto do romance, é que "Dom Quixote " é uma paródia dos livros de cavalaria. O autor pretendeu, segundo as suas próprias palavras, "destruir a autoridade descabida que exercem no mundo e entre o povo os livros de cavalaria." No último capítulo da obra, quando Dom Quixote já se encontra no leito de morte e recupera a lucidez, voltando a ser o bom Alonso Quijano, ele desabafa aos amigos que o cercam: "Tenho o juízo já livre e claro, sem as sombras nebulosas da ignorância com que o ofuscou a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros de cavalaria. Já conheço os seus disparates e imposturas e só me pesa ter chegado tão tarde este desengano, que não me desse tempo para me emendar, lendo outros que fossem luz da alma". E mais adiante: "Já sou inimigo de Amadis de Gaula e do infinito bando de sua linhagem; já me são odiosas todas as histórias profanas de cavalaria andante; já conheço minha sandice e o perigo em que me pôs o tê-las lido; já por misericórdia de Deus, e bem escarmentado, as abomino".Um romance não é obra apenas da razão. Resulta sobretudo do inconsciente, lá onde a intuição e a imaginação garimpam a matéria-prima que surpreende o próprio autor. Portanto, ao motivo explícito revelado por Cervantes ­ a crítica radical à literatura de cavalaria ­ há que se perguntar que outras motivações o impeliram a dedicar tantos anos a uma obra tão bem estruturada. Não importa que essas motivações não tenham sido apontadas pelo autor e, quem sabe, nem eram nele conscientes. Assim como o funcionamento de um relógio pode ser melhor compreendido ao desmontá-lo em suas diferentes peças, também o texto, como as pirâmides do Egito, contém galerias e redutos plenos de tesouros.A crítica socialA crítica social de "Dom Quixote " é melhor percebida ao recordar que o autor foi súdito da monarquia absolutista de Felipe II, apoiada pela Contra-reforma tridentina, e redigiu sua novela sob o reinado decadente de Felipe III. Felipe II arruinara a Espanha com a sua megalomania expansionista, investindo na dilatação de um império que abarcava desde as Filipinas ao norte da Europa, a África e o Novo Mundo latino-americano, até mesmo o Brasil, onde os portugueses foram os primeiros a aportar. As exorbitantes despesas militares, a obsessão por espalhar pelos mares sua Armada Invencível, os gastos com a exploração e a importação de ouro e prata das Américas, foram fatores que mergulharam o país de Cervantes na espiral inflacionária, agravando a crise social. A Mancha, terra de Dom Quixote, é o retrato da decadência do reino, onde o desemprego multiplicava pelos povoados e caminhos pícaros, mendigos, vadios, charlatães, bandidos, enfim, toda uma classe de marginalizados e excluídos cujos farrapos destoavam dos elmos dos oficiais do rei e dos heróis dos romances de cavalaria.Em 1898 a Espanha perdeu, com a independência de Cuba, suas últimas colônias. Então o " Quixote " passou a ser lido com novos olhos: Cervantes prefigurara ali a ruína da Espanha, desbancada de sua loucura imperialista ­ embora a herança conservadora da Contra-reforma tenha produzido, no século XX, a aterradora figura do generalíssimo Franco.Tornar-se hoje mais fácil reler o " Quixote " destacando sua aguda crítica social. Em 1605 já não havia castelos na Mancha. Havia casebres, albergues e bodegas, entre os quais trafegariam o cavaleiro da triste figura e Sancho Pança, seu fiel escudeiro, opondo-se a todas as instituições de poder: o Estado, a polícia, a Igreja e as atividades econômicas.Em 1925 Américo Castro publicou "El pensamiento de Cervantes", comprovando a influência de Erasmo de Rotterdã sobre Cervantes. López de Hoyos, professor do criador do Quixote, era erasmista convicto. Em um trecho do romance é citado o livro de devoção "Luz del alma", de frei Felipe de Meneses, também discípulo de Erasmo. Este erudito sacerdote flamengo dedicou-se a libertar a teologia do formalismo da escolástica decadente. Era um homem de mente aberta, tornara os textos bíblicos acessíveis aos leitores leigos, desmistificou o rigor acadêmico dos textos teológicos, tão misteriosos e herméticos aos olhos do vulgo frente aos dogmas que reforçavam.Nutrido pelas fontes do pensamento humanista, como Platão, Aristóteles e Horácio, Cervantes relativizou tudo aquilo que o poder, tanto político quanto eclesiástico, absolutizava. Iniciou sua narrativa por nos contar que Alonso Quijano enlouqueceu de tanto ler. E a partir daí construiu o contraponto entre ilusão e verdade, mesclando a realidade e o sonho, o cotidiano e o quimérico, o heróico e o cômico, sem ceder ao ceticismo dos escritores barrocos. "Dom Quixote" não é um romance picaresco, embora esteja repleto de pícaros. É uma sátira inconformista que arranca a máscara do império espanhol, mostrando que não há heróis nem cavaleiros, há sim maus escritores, soldados indisciplinados, inquisidores disfarçados, médicos incompetentes, bandidos, assaltantes, camponeses e pastores.Otto Maria Carpeaux observou que, influenciado pelo humanismo tolerante e crítico de Erasmo, Cervantes fez uma criação crítica e uma crítica criadora. Seu personagem defende as vítimas das injustiças praticadas pelos poderosos e nos alerta para a facilidade com que os nossos olhos míopes encaram a realidade: vemos gigantes maldosos onde há apenas moinhos de vento; exército de inimigos onde pasta um rebanho de ovelhas; um grande troféu numa simples bacia de barbeiro."Amadis de Gaula" e outros romances de cavalaria glorificavam a mentalidade feudal e a empresa colonizadora da Armada espanhola. Cervantes ergueu a sua pena contra todos aqueles que insistiam na loucura de pretender encobrir a verdade histórica com a ficção cosmética. Na folha de rosto da 1ª. ediçao há o desenho de um escudo e, nele, o lema: "Post tenebris, spero lucem"- depois das trevas, espero luz. A luz do antidogmatismo, que derruba as verdades absolutas e as certezas consideradas irremovíveis. A luz que nos permite ver que, de fato, tudo é ambíguo, contraditório, dialético. Até mesmo o próprio Cervantes, que no fim da vida escreveu ­ pasmem! ­ um romance de cavalaria, "Persiles y Segismunda".Bergamín (e não Chesterton, como muitos pensam), nos preveniu que "louco é aquele que perdeu tudo, menos a razao". E Michel Foucault frisa que Quixote é o louco senhor da razão, mas não com a sua loucura, e sim com o seu protesto. Hoje, o império são os EUA. E onde há apenas pequenas instalações industriais e bases petrolíferas ele enxerga armas de destruição em massa; onde há apenas famílias trabalhadoras, ele vê terroristas; onde há tão-somente homens e mulheres que praticam com devoção sua fé muçulmana, ele aponta fanáticos e fundamentalistas.Onde andarão os Cervantes capazes de derrotar com a sua pena aqueles que nos miram com as suas armas?-

Frei Betto é escritor, autor de “Treze Contos Diabólicos e um Angélico”, que a editora Planeta lançou em março.