sexta-feira, 12 de junho de 2009
quinta-feira, 11 de junho de 2009
Transporte coletivo urbano: crise de financiamento vs. crise de mobilidade
artigo postado por Manolo no centro de midia independente (CMI)http://www.midiaindependente.org/ em 03/02/2007
Estamos vivendo de novembro para cá uma onda de aumentos de tarifas nos ônibus de cidades do país inteiro: as tarifas aumentaram ou estão na iminência de aumentar em Aracaju (SE), São Paulo (SP), Porto Velho (RO), Santos (SP), Betim (MG), Rio Branco (AC), Blumenau (SC), Salvador (BA), Campo Grande (MS) e Florianópolis (SC). Acontece que, como já havia dito num comentário em alguma notícia perdida no CMI, aumento é boi de piranha. O aumento, porque ataca nossos bolsos, chama a atenção para si, quando na verdade ele é um "divertículo" que tira nossa atenção da questão principal, que é a estrutura do sistema de transportes e a mercantilização do direito de ir e vir das pessoas por uma máfia empresarial que conta com o apoio de diversas prefeituras, vereadores, políticos locais e estaduais etc.
Basta dizermos que o problema está na estrutura do sistema, sem mencionarmos a mercantilização do direito de ir e vir das pessoas, que essa mesma máfia concordará conosco. "Sim, temos um problema grave no sistema de transporte coletivo, porque as empresas estão quebrando e são obrigadas a pedir aumentos de tarifa às prefeituras", é o que eles nos dirão. "Não temos mais como aceitar as gratuidades socialmente desnecessárias que prefeitos populistas e irresponsáveis nos impõem", é o que eles nos advertirão. (...)"O setor está em crise porque não tem mais como se financiar unicamente através da tarifa", é o que transparece no discurso dos empresários e dos técnicos que a eles se submetem. Trata-se de uma crise de financiamento, que, segundo eles, deve ser resolvida o quanto antes para que o sistema volte a funcionar como deveria. Resolver esta crise significaria, então, garantir a mobilidade da população e trazer progressivamente de volta para o sistema de transporte coletivo urbano os cerca de 37 milhões de brasileiros que hoje são forçados a andar a pé, e apenas a pé, pelas cidades brasileiras.
Na verdade o problema é outro. É estrutural. O transporte coletivo urbano exige tamanho investimento em infraestrutura que este setor passa a ser objeto de desejo de uma fração reduzidíssima de empresários com altíssimo capital acumulado. Se considerarmos, por exemplo, o preço médio de um ônibus modelo padron em 2004 (R$ 144.630,96), e se considerarmos que as empresas têm frotas que variam entre 62 e 220 ônibus (tomando Salvador como base), temos, só em ônibus, entre R$ 8.967.119,52 a R$ 31.818.811,20 mobilizados por uma só empresa. E ainda há que se considerar a folha salarial dos empregados (que pode variar, tomando novamente Salvador como base, entre 327 a 1.055 funcionários), a garagem (um terreno enorme onde caiba toda a frota e haja espaço para oficinas mecânicas, depósitos de peças e combustiveis, escritórios etc.), custos com manutenção dos veículos etc. Investimentos de tão alta monta num determinado setor geram o que os economistas chamam de "situação de monopólio natural", ou seja, uma situação na qual o equipamento necessário é tão grande, ou a economia de escala é tão grande (ou seja, só dá para ter lucro a partir de uma certa escala de produção, geralmente enorme) que há poucas empresas ou pessoas em condições financeiras de participar deste setor.
Basta observar a história dos transportes para entender: em qualquer cidade, trata-se de uma epopéia de quebras, falências e concentração do setor na mão de poucas empresas.
A história dos transportes públicos no Brasil é também uma história de luta dos empresários para conseguirem privilégios do Estado contra situações adversas. Diante da chegada dos ônibus no Rio de Janeiro em 1837 pelas mãos de João Lecocq, os alugadores de animais de montaria e segeiros apedrejaram o novo veículo; os donos de carruagens, cabriolés e tílburis pressionaram a Câmara Municipal a cobrar impostos e taxas pesados contra os ônibus, além de regulamentos tal como o uso de luzes noturnas, feitos para impor mais gastos e tentar quebrar o negócio. Em Porto Alegre, em 1926, com a chegada dos ônibus e automóveis - maiores e mais confortáveis que os bondes - as companhias de bondes exigiram, sem sucesso, que a Prefeitura aumentasse tarifas e lhes concedesse exclusividade na exploração das linhas. Em Recife, João Tude, da Auto Viação Progresso, conseguiu na década de 1950 isenção de impostos durante vinte anos para operar.
As quebras, as falências, as encampações, as isenções, as proteções contra a inovação tecnológica, tudo isto se dá porque:
a) Não há como ganhar dinheiro transportando pessoas em pequena escala sem estabelecer tarifas exorbitantes; se você tem carro e divide gasolina com caronistas, basta ver que eles só aceitam fazê-lo até o ponto em que gastam por mês a mesma coisa ou pouco mais do que gastariam se andassem de ônibus, e isso só acontece em trajetos pequenos devido ao preço do combustível.
b) Não há como ganhar dinheiro transportando pessoas com tarifas baratas a não ser em larga escala;
c) Qualquer mínima alteração no setor - inovação tecnológica, entrada de novos concorrentes mais capitalizados etc. - afeta imediatamente os empresários já atuantes, pois a escala de operação a partir da qual se pode pensar em lucro no sistema de transporte é muito grande.
Por isso mesmo, e por outras questões que não cabem aqui por falta de espaço, a questão não está no financiamento, a crise não se dá porque falta dinheiro. A crise se dá porque o deslocamento humano nas cidades tem sido tratado como mercadoria desde o surgimento do transporte coletivo urbano. Antes do surgimento do transporte coletivo, o deslocamento humano nas cidades se dava a partir da correlação entre o vigor físico de quem se deslocava e a distância a ser percorrida. Só dispunha de meios de transporte individuais - cavalos, carruagens, liteiras, cadeirinhas etc. - quem pertencia à elite, ou então quem já o possuía como instrumento de trabalho. Uma enorme massa de pessoas não dispunha de outro meio de transporte além de suas próprias pernas. Para esta enorme massa de pessoas que perdura até hoje, a crise no transporte público não é vista como crise de financiamento, mas sim como crise de mobilidade: ou seja, a crise está no fato simples de que cada vez menos pessoas têm acesso ao transporte coletivo urbano e, por isso, vêm reduzido o espaço urbano no qual podem mover-se e, a partir disso, agir socialmente.
Quando surge o transporte coletivo, abre-se a possibilidade desta massa de pessoas deslocar-se rápida e confortavelmente mesmo sem possuir veículo próprio, mas as tarifas permaneceram por longo tempo sendo-lhes proibitivas. Pouco havia sido feito para mudar este quadro de coisas até a, quando década de 1970 o transporte é tornado elemento estrutural do planejamento econômico no Brasil, uma vez que somente a partir dele os trabalhadores podem chegar a seus locais de trabalho: o hoje extinto Grupo de Estudos para a Integração da Política de Transportes (GEIPOT) é criado em 1965 pelo governo federal para pensar o transporte em geral (cargas e passageiros) e planejar o setor. Em 1986 surge o vale-transporte, encerrando-se o ciclo de modificações que nos dá o quadro atual do transporte público urbano. Acontece que tantas modificações não se dão à-toa, por boa-vontade dos planejadores ou dos patrões. Além do evidente barateamento dos custos com mão-de-obra, por trás do planejamento dos transportes estava uma onda de protestos populares contra aumentos de tarifas e a péssima qualidade do transporte coletivo, que surgiu por volta de 1974 e durou pelo menos até 1981, alastrando-se por quase todas as capitais brasileiras. Estes protestos terminavam geralmente em quebra-quebras generalizados, com destruição de veículos, saques a lojas e bancos etc. Mesmo sem canal de expressão política, o povo dizia através de seus atos: "já basta de ficarmos confinados nas periferias como se vivêssemos em campos de concentração!"
A crise de mobilidade é infinitamente mais grave que a crise de financiamento, mas é tratada nos debates públicos como uma função desta última, como se nosso direito de ir e vir necessitasse estar submetido ao funcionamento lucrativo das empresas de transporte coletivo. Para se ter uma idéia do aprofundamento da crise de mobilidade no Brasil, uma pesquisa da extinta Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República feita em 2002 indica que 37,5% dos usuários de ônibus urbanos pertence à classe C, 27,5% à classe B, 7,5% à classe A e 27,5% às classes D e E juntas; basta lembrar que a maioria da população brasileira está nestas duas últimas classes para se ter uma idéia da gravidade da crise de mobilidade. Só em Salvador a média mensal de passageiros transportados por ônibus, principal meio de transporte público da cidade, caiu 15,07% entre 1995 e 2006. O transporte, graças aos sucessivos aumentos de tarifa, vêm se elitizando. Os empresários querem resolver sua crise de financiamento, que é um aspecto secundário do transporte público diante da crise de mobilidade, aumentando os preços e ganhando em cima de um público que certamente tem dinheiro para pagar, elitizando o deslocamento humano através dos transportes públicos; há para eles a opção de aumentar seu lucro pelo barateamento máximo das tarifas, para ganharem no atacado com uma taxa de lucro mínima, mas é uma operação arriscada para um setor sensível. Os empresários têm alternativas, mas preferem aquela que lhes é mais segura: tirar os pobres do transporte coletivo urbano e trabalhar apenas com setores progressivamente mais elitizados. Não fazem outra coisa a não ser aumentar a crise de mobilidade da população.
Os aumentos de tarifa, assim, deixam de ser a questão principal. São apenas um sintoma de algo muito mais grave. Tentar trabalhar num setor da economia onde há uma situação de monopólio natural como se se estivesse num setor onde há condições para exercício da concorrência exige uma série de privilégios para os empresários, que nem o Estado e nem a população têm mais condições de dar. Tentar iludir o povo com promessas de melhoria de qualidade do serviço a cada aumento, ou restringir a luta popular à luta contra os aumentos de tarifa, significa concordar com a totalidade da estrutura equivocada com que hoje o setor opera. Devemos, sim, lutar contra os aumentos, mas colocar tal luta dentro de uma luta mais ampla para minar o poder da iniciativa privada sobre o setor, a partir do estabelecimento progressivo de controles populares rígidos sobre a prestação do serviço de transportes, uma vez que os empresários é que têm poder sobre as condições da prestação de serviço e dificilmente obedecem a regras ou se deixam fiscalizar por quem quer que seja. (...)
Dentre vários serviços públicos, o transporte coletivo é o único que não foi totalmente encampado pelo poder público, apesar da situação de monopólio natural que está em seu DNA. Só o poder público, através do dinheiro que pagamos através de tributos, tem capacidade financeira para lidar com o setor de transporte coletivo urbano sem arriscar a qualidade da prestação do serviço. Sai até mais barato: se um passageiro paga individualmente por seu deslocamento, a partir do momento em que o sistema sai da iniciativa privada e é totalmente custeado por dinheiro de tributos, não é só o passageiro individual que paga por seu próprio deslocamento, mas a soma de seus tributos com o de outras pessoas, o que implica numa fatia menor de pagamento para cada um. Dinheiro para isso existe; o problema é que, hoje, ele escoa para as cuecas e para o pagamento de dívidas contraídas sem nosso consentimento e sob as piores condições. Resta nos mobilizarmos para que a mudança aconteça. Ou melhor: englobarmos a luta pontual contra os aumentos na luta mais ampla pela modificação de todo o sistema de transporte coletivo urbano para superar a crise de mobilidade do povo pobre, ao invés de nos pautarmos apenas pela crise de financiamento dos empresários.
Estamos vivendo de novembro para cá uma onda de aumentos de tarifas nos ônibus de cidades do país inteiro: as tarifas aumentaram ou estão na iminência de aumentar em Aracaju (SE), São Paulo (SP), Porto Velho (RO), Santos (SP), Betim (MG), Rio Branco (AC), Blumenau (SC), Salvador (BA), Campo Grande (MS) e Florianópolis (SC). Acontece que, como já havia dito num comentário em alguma notícia perdida no CMI, aumento é boi de piranha. O aumento, porque ataca nossos bolsos, chama a atenção para si, quando na verdade ele é um "divertículo" que tira nossa atenção da questão principal, que é a estrutura do sistema de transportes e a mercantilização do direito de ir e vir das pessoas por uma máfia empresarial que conta com o apoio de diversas prefeituras, vereadores, políticos locais e estaduais etc.
Basta dizermos que o problema está na estrutura do sistema, sem mencionarmos a mercantilização do direito de ir e vir das pessoas, que essa mesma máfia concordará conosco. "Sim, temos um problema grave no sistema de transporte coletivo, porque as empresas estão quebrando e são obrigadas a pedir aumentos de tarifa às prefeituras", é o que eles nos dirão. "Não temos mais como aceitar as gratuidades socialmente desnecessárias que prefeitos populistas e irresponsáveis nos impõem", é o que eles nos advertirão. (...)"O setor está em crise porque não tem mais como se financiar unicamente através da tarifa", é o que transparece no discurso dos empresários e dos técnicos que a eles se submetem. Trata-se de uma crise de financiamento, que, segundo eles, deve ser resolvida o quanto antes para que o sistema volte a funcionar como deveria. Resolver esta crise significaria, então, garantir a mobilidade da população e trazer progressivamente de volta para o sistema de transporte coletivo urbano os cerca de 37 milhões de brasileiros que hoje são forçados a andar a pé, e apenas a pé, pelas cidades brasileiras.
Na verdade o problema é outro. É estrutural. O transporte coletivo urbano exige tamanho investimento em infraestrutura que este setor passa a ser objeto de desejo de uma fração reduzidíssima de empresários com altíssimo capital acumulado. Se considerarmos, por exemplo, o preço médio de um ônibus modelo padron em 2004 (R$ 144.630,96), e se considerarmos que as empresas têm frotas que variam entre 62 e 220 ônibus (tomando Salvador como base), temos, só em ônibus, entre R$ 8.967.119,52 a R$ 31.818.811,20 mobilizados por uma só empresa. E ainda há que se considerar a folha salarial dos empregados (que pode variar, tomando novamente Salvador como base, entre 327 a 1.055 funcionários), a garagem (um terreno enorme onde caiba toda a frota e haja espaço para oficinas mecânicas, depósitos de peças e combustiveis, escritórios etc.), custos com manutenção dos veículos etc. Investimentos de tão alta monta num determinado setor geram o que os economistas chamam de "situação de monopólio natural", ou seja, uma situação na qual o equipamento necessário é tão grande, ou a economia de escala é tão grande (ou seja, só dá para ter lucro a partir de uma certa escala de produção, geralmente enorme) que há poucas empresas ou pessoas em condições financeiras de participar deste setor.
Basta observar a história dos transportes para entender: em qualquer cidade, trata-se de uma epopéia de quebras, falências e concentração do setor na mão de poucas empresas.
A história dos transportes públicos no Brasil é também uma história de luta dos empresários para conseguirem privilégios do Estado contra situações adversas. Diante da chegada dos ônibus no Rio de Janeiro em 1837 pelas mãos de João Lecocq, os alugadores de animais de montaria e segeiros apedrejaram o novo veículo; os donos de carruagens, cabriolés e tílburis pressionaram a Câmara Municipal a cobrar impostos e taxas pesados contra os ônibus, além de regulamentos tal como o uso de luzes noturnas, feitos para impor mais gastos e tentar quebrar o negócio. Em Porto Alegre, em 1926, com a chegada dos ônibus e automóveis - maiores e mais confortáveis que os bondes - as companhias de bondes exigiram, sem sucesso, que a Prefeitura aumentasse tarifas e lhes concedesse exclusividade na exploração das linhas. Em Recife, João Tude, da Auto Viação Progresso, conseguiu na década de 1950 isenção de impostos durante vinte anos para operar.
As quebras, as falências, as encampações, as isenções, as proteções contra a inovação tecnológica, tudo isto se dá porque:
a) Não há como ganhar dinheiro transportando pessoas em pequena escala sem estabelecer tarifas exorbitantes; se você tem carro e divide gasolina com caronistas, basta ver que eles só aceitam fazê-lo até o ponto em que gastam por mês a mesma coisa ou pouco mais do que gastariam se andassem de ônibus, e isso só acontece em trajetos pequenos devido ao preço do combustível.
b) Não há como ganhar dinheiro transportando pessoas com tarifas baratas a não ser em larga escala;
c) Qualquer mínima alteração no setor - inovação tecnológica, entrada de novos concorrentes mais capitalizados etc. - afeta imediatamente os empresários já atuantes, pois a escala de operação a partir da qual se pode pensar em lucro no sistema de transporte é muito grande.
Por isso mesmo, e por outras questões que não cabem aqui por falta de espaço, a questão não está no financiamento, a crise não se dá porque falta dinheiro. A crise se dá porque o deslocamento humano nas cidades tem sido tratado como mercadoria desde o surgimento do transporte coletivo urbano. Antes do surgimento do transporte coletivo, o deslocamento humano nas cidades se dava a partir da correlação entre o vigor físico de quem se deslocava e a distância a ser percorrida. Só dispunha de meios de transporte individuais - cavalos, carruagens, liteiras, cadeirinhas etc. - quem pertencia à elite, ou então quem já o possuía como instrumento de trabalho. Uma enorme massa de pessoas não dispunha de outro meio de transporte além de suas próprias pernas. Para esta enorme massa de pessoas que perdura até hoje, a crise no transporte público não é vista como crise de financiamento, mas sim como crise de mobilidade: ou seja, a crise está no fato simples de que cada vez menos pessoas têm acesso ao transporte coletivo urbano e, por isso, vêm reduzido o espaço urbano no qual podem mover-se e, a partir disso, agir socialmente.
Quando surge o transporte coletivo, abre-se a possibilidade desta massa de pessoas deslocar-se rápida e confortavelmente mesmo sem possuir veículo próprio, mas as tarifas permaneceram por longo tempo sendo-lhes proibitivas. Pouco havia sido feito para mudar este quadro de coisas até a, quando década de 1970 o transporte é tornado elemento estrutural do planejamento econômico no Brasil, uma vez que somente a partir dele os trabalhadores podem chegar a seus locais de trabalho: o hoje extinto Grupo de Estudos para a Integração da Política de Transportes (GEIPOT) é criado em 1965 pelo governo federal para pensar o transporte em geral (cargas e passageiros) e planejar o setor. Em 1986 surge o vale-transporte, encerrando-se o ciclo de modificações que nos dá o quadro atual do transporte público urbano. Acontece que tantas modificações não se dão à-toa, por boa-vontade dos planejadores ou dos patrões. Além do evidente barateamento dos custos com mão-de-obra, por trás do planejamento dos transportes estava uma onda de protestos populares contra aumentos de tarifas e a péssima qualidade do transporte coletivo, que surgiu por volta de 1974 e durou pelo menos até 1981, alastrando-se por quase todas as capitais brasileiras. Estes protestos terminavam geralmente em quebra-quebras generalizados, com destruição de veículos, saques a lojas e bancos etc. Mesmo sem canal de expressão política, o povo dizia através de seus atos: "já basta de ficarmos confinados nas periferias como se vivêssemos em campos de concentração!"
A crise de mobilidade é infinitamente mais grave que a crise de financiamento, mas é tratada nos debates públicos como uma função desta última, como se nosso direito de ir e vir necessitasse estar submetido ao funcionamento lucrativo das empresas de transporte coletivo. Para se ter uma idéia do aprofundamento da crise de mobilidade no Brasil, uma pesquisa da extinta Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República feita em 2002 indica que 37,5% dos usuários de ônibus urbanos pertence à classe C, 27,5% à classe B, 7,5% à classe A e 27,5% às classes D e E juntas; basta lembrar que a maioria da população brasileira está nestas duas últimas classes para se ter uma idéia da gravidade da crise de mobilidade. Só em Salvador a média mensal de passageiros transportados por ônibus, principal meio de transporte público da cidade, caiu 15,07% entre 1995 e 2006. O transporte, graças aos sucessivos aumentos de tarifa, vêm se elitizando. Os empresários querem resolver sua crise de financiamento, que é um aspecto secundário do transporte público diante da crise de mobilidade, aumentando os preços e ganhando em cima de um público que certamente tem dinheiro para pagar, elitizando o deslocamento humano através dos transportes públicos; há para eles a opção de aumentar seu lucro pelo barateamento máximo das tarifas, para ganharem no atacado com uma taxa de lucro mínima, mas é uma operação arriscada para um setor sensível. Os empresários têm alternativas, mas preferem aquela que lhes é mais segura: tirar os pobres do transporte coletivo urbano e trabalhar apenas com setores progressivamente mais elitizados. Não fazem outra coisa a não ser aumentar a crise de mobilidade da população.
Os aumentos de tarifa, assim, deixam de ser a questão principal. São apenas um sintoma de algo muito mais grave. Tentar trabalhar num setor da economia onde há uma situação de monopólio natural como se se estivesse num setor onde há condições para exercício da concorrência exige uma série de privilégios para os empresários, que nem o Estado e nem a população têm mais condições de dar. Tentar iludir o povo com promessas de melhoria de qualidade do serviço a cada aumento, ou restringir a luta popular à luta contra os aumentos de tarifa, significa concordar com a totalidade da estrutura equivocada com que hoje o setor opera. Devemos, sim, lutar contra os aumentos, mas colocar tal luta dentro de uma luta mais ampla para minar o poder da iniciativa privada sobre o setor, a partir do estabelecimento progressivo de controles populares rígidos sobre a prestação do serviço de transportes, uma vez que os empresários é que têm poder sobre as condições da prestação de serviço e dificilmente obedecem a regras ou se deixam fiscalizar por quem quer que seja. (...)
Dentre vários serviços públicos, o transporte coletivo é o único que não foi totalmente encampado pelo poder público, apesar da situação de monopólio natural que está em seu DNA. Só o poder público, através do dinheiro que pagamos através de tributos, tem capacidade financeira para lidar com o setor de transporte coletivo urbano sem arriscar a qualidade da prestação do serviço. Sai até mais barato: se um passageiro paga individualmente por seu deslocamento, a partir do momento em que o sistema sai da iniciativa privada e é totalmente custeado por dinheiro de tributos, não é só o passageiro individual que paga por seu próprio deslocamento, mas a soma de seus tributos com o de outras pessoas, o que implica numa fatia menor de pagamento para cada um. Dinheiro para isso existe; o problema é que, hoje, ele escoa para as cuecas e para o pagamento de dívidas contraídas sem nosso consentimento e sob as piores condições. Resta nos mobilizarmos para que a mudança aconteça. Ou melhor: englobarmos a luta pontual contra os aumentos na luta mais ampla pela modificação de todo o sistema de transporte coletivo urbano para superar a crise de mobilidade do povo pobre, ao invés de nos pautarmos apenas pela crise de financiamento dos empresários.
domingo, 7 de junho de 2009
"De Bonner Para Homer"
Bonner compara o típico telespectador brasileiro com Homer Simpson
Carta Capital, 5/12/05
"Perplexidade no ar. Um grupo de professores da USP está reunido em torno da mesa onde o apresentador de tevê William Bonner realiza a reunião de pauta matutina do Jornal Nacional, na quarta-feira, 23 de novembro.
Alguns custam a acreditar no que vêem e ouvem. A escolha dos principais assuntos a serem transmitidos para milhões de pessoas em todo o Brasil, dali a algumas horas, é feita superficialmente, quase sem discussão.
Os professores estão lá a convite da Rede Globo para conhecer um pouco do funcionamento do Jornal Nacional e algumas das instalações da empresa no Rio de Janeiro. São nove, de diferentes faculdades e foram convidados por terem dado palestras num curso de telejornalismo promovido pela emissora juntamente com a Escola de Comunicações e Artes da USP. Chegaram ao Rio no meio da manhã e do Santos Dumont uma van os levou ao Jardim Botânico.
A conversa com o apresentador, que é também editor-chefe do jornal, começa um pouco antes da reunião de pauta, ainda de pé numa ante-sala bem suprida de doces, salgados, sucos e café. E sua primeira informação viria a se tornar referência para todas as conversas seguintes. Depois de um simpático ‘bom-dia’, Bonner informa sobre uma pesquisa realizada pela Globo que identificou o perfil do telespectador médio do Jornal Nacional. Constatou-se que ele tem muita dificuldade para entender notícias complexas e pouca familiaridade com siglas como BNDES, por exemplo. Na redação, foi apelidado de Homer Simpson. Trata-se do simpático mas obtuso personagem dos Simpsons, uma das séries estadunidenses de maior sucesso na televisão em todo o mundo. Pai da família Simpson, Homer adora ficar no sofá, comendo rosquinhas e bebendo cerveja. É preguiçoso e tem o raciocínio lento.
A explicação inicial seria mais do que necessária. Daí para a frente o nome mais citado pelo editor-chefe do Jornal Nacional é o do senhor Simpson. ‘Essa o Homer não vai entender’, diz Bonner, com convicção, antes de rifar uma reportagem que, segundo ele, o telespectador brasileiro médio não compreenderia.
Mal-estar entre alguns professores. Dada a linha condutora dos trabalhos - atender ao Homer -, passa-se à reunião para discutir a pauta do dia. Na cabeceira, o editor-chefe; nas laterais, alguns jornalistas responsáveis por determinadas editorias e pela produção do jornal; e na tela instalada numa das paredes, imagens das redações de Nova York, Brasília, São Paulo e Belo Horizonte, com os seus representantes. Outras cidades também suprem o JN de notícias (Pequim, Porto Alegre, Roma), mas elas não entram nessa conversa eletrônica. E, num círculo maior, ainda ao redor da mesa, os professores convidados. É a teleconferência diária, acompanhada de perto pelos visitantes.
Todos recebem, por escrito, uma breve descrição dos temas oferecidos pelas ‘praças’ (cidades onde se produzem reportagens para o jornal) que são analisados pelo editor-chefe. Esse resumo é transmitido logo cedo para o Rio e depois, na reunião, cada editor tenta explicar e defender as ofertas, mas eles não vão muito além do que está no papel. Ninguém contraria o chefe.
A primeira reportagem oferecida pela ‘praça’ de Nova York trata da venda de óleo para calefação a baixo custo feita por uma empresa de petróleo da Venezuela para famílias pobres do estado de Massachusetts. O resumo da ‘oferta’ jornalística informa que a empresa venezuelana, ‘que tem 14 mil postos de gasolina nos Estados Unidos, separou 45 milhões de litros de combustível’ para serem ‘vendidos em parcerias com ONGs locais a preços 40% mais baixos do que os praticados no mercado americano’. Uma notícia de impacto social e político.
O editor-chefe do Jornal Nacional apenas pergunta se os jornalistas têm a posição do governo dos Estados Unidos antes de, rapidamente, dizer que considera a notícia imprópria para o jornal. E segue em frente.
Na seqüência, entre uma imitação do presidente Lula e da fala de um argentino, passa a defender com grande empolgação uma matéria oferecida pela ‘praça’ de Belo Horizonte. Em Contagem, um juiz estava determinando a soltura de presos por falta de condições carcerárias. A argumentação do editor-chefe é sobre o perigo de criminosos voltarem às ruas. ‘Esse juiz é um louco’, chega a dizer, indignado. Nenhuma palavra sobre os motivos que levaram o magistrado a tomar essa medida e, muito menos, sobre a situação dos presídios no Brasil. A defesa da matéria é em cima do medo, sentimento que se espalha pelo País e rende preciosos pontos de audiência.
Sobre a greve dos peritos do INSS, que completava um mês - matéria oferecida por São Paulo -, o comentário gira em torno dos prejuízos causados ao órgão. ‘Quantos segurados já poderiam ter voltado ao trabalho e, sem perícia, continuam onerando o INSS’, ouve-se. E sobre os grevistas? Nada.
De Brasília é oferecida uma reportagem sobre ‘a importância do superávit fiscal para reduzir a dívida pública’. Um dos visitantes, o professor Gilson Schwartz, observou como a argumentação da proponente obedecia aos cânones econômicos ortodoxos e ressaltou a falta de visões alternativas no noticiário global.
Encerrada a reunião segue-se um tour pelas áreas técnica e jornalística, com a inevitável parada em torno da bancada onde o editor-chefe senta-se diariamente ao lado da esposa para falar ao Brasil. A visita inclui a passagem diante da tela do computador em que os índices de audiência chegam em tempo real. Líder eterna, a Globo pela manhã é assediada pelo Chaves mexicano, transmitido pelo SBT. Pelo menos é o que dizem os números do Ibope.
E no almoço, antes da sobremesa, chega o espelho do Jornal Nacional daquela noite (no jargão, espelho é a previsão das reportagens a serem transmitidas, relacionadas pela ordem de entrada e com a respectiva duração). Nenhuma grande novidade. A matéria dos presos libertados pelo juiz de Contagem abriria o jornal. E o óleo barato do Chávez venezuelano foi para o limbo.
Diante de saborosas tortas e antes de seguirem para o Projac - o centro de produções de novelas, seriados e programas de auditório da Globo em Jacarepaguá - os professores continuam ouvindo inúmeras referências ao Homer. A mesa é comprida e em torno dela notam-se alguns olhares constrangidos.
"Perplexidade no ar. Um grupo de professores da USP está reunido em torno da mesa onde o apresentador de tevê William Bonner realiza a reunião de pauta matutina do Jornal Nacional, na quarta-feira, 23 de novembro.
Alguns custam a acreditar no que vêem e ouvem. A escolha dos principais assuntos a serem transmitidos para milhões de pessoas em todo o Brasil, dali a algumas horas, é feita superficialmente, quase sem discussão.
Os professores estão lá a convite da Rede Globo para conhecer um pouco do funcionamento do Jornal Nacional e algumas das instalações da empresa no Rio de Janeiro. São nove, de diferentes faculdades e foram convidados por terem dado palestras num curso de telejornalismo promovido pela emissora juntamente com a Escola de Comunicações e Artes da USP. Chegaram ao Rio no meio da manhã e do Santos Dumont uma van os levou ao Jardim Botânico.
A conversa com o apresentador, que é também editor-chefe do jornal, começa um pouco antes da reunião de pauta, ainda de pé numa ante-sala bem suprida de doces, salgados, sucos e café. E sua primeira informação viria a se tornar referência para todas as conversas seguintes. Depois de um simpático ‘bom-dia’, Bonner informa sobre uma pesquisa realizada pela Globo que identificou o perfil do telespectador médio do Jornal Nacional. Constatou-se que ele tem muita dificuldade para entender notícias complexas e pouca familiaridade com siglas como BNDES, por exemplo. Na redação, foi apelidado de Homer Simpson. Trata-se do simpático mas obtuso personagem dos Simpsons, uma das séries estadunidenses de maior sucesso na televisão em todo o mundo. Pai da família Simpson, Homer adora ficar no sofá, comendo rosquinhas e bebendo cerveja. É preguiçoso e tem o raciocínio lento.
A explicação inicial seria mais do que necessária. Daí para a frente o nome mais citado pelo editor-chefe do Jornal Nacional é o do senhor Simpson. ‘Essa o Homer não vai entender’, diz Bonner, com convicção, antes de rifar uma reportagem que, segundo ele, o telespectador brasileiro médio não compreenderia.
Mal-estar entre alguns professores. Dada a linha condutora dos trabalhos - atender ao Homer -, passa-se à reunião para discutir a pauta do dia. Na cabeceira, o editor-chefe; nas laterais, alguns jornalistas responsáveis por determinadas editorias e pela produção do jornal; e na tela instalada numa das paredes, imagens das redações de Nova York, Brasília, São Paulo e Belo Horizonte, com os seus representantes. Outras cidades também suprem o JN de notícias (Pequim, Porto Alegre, Roma), mas elas não entram nessa conversa eletrônica. E, num círculo maior, ainda ao redor da mesa, os professores convidados. É a teleconferência diária, acompanhada de perto pelos visitantes.
Todos recebem, por escrito, uma breve descrição dos temas oferecidos pelas ‘praças’ (cidades onde se produzem reportagens para o jornal) que são analisados pelo editor-chefe. Esse resumo é transmitido logo cedo para o Rio e depois, na reunião, cada editor tenta explicar e defender as ofertas, mas eles não vão muito além do que está no papel. Ninguém contraria o chefe.
A primeira reportagem oferecida pela ‘praça’ de Nova York trata da venda de óleo para calefação a baixo custo feita por uma empresa de petróleo da Venezuela para famílias pobres do estado de Massachusetts. O resumo da ‘oferta’ jornalística informa que a empresa venezuelana, ‘que tem 14 mil postos de gasolina nos Estados Unidos, separou 45 milhões de litros de combustível’ para serem ‘vendidos em parcerias com ONGs locais a preços 40% mais baixos do que os praticados no mercado americano’. Uma notícia de impacto social e político.
O editor-chefe do Jornal Nacional apenas pergunta se os jornalistas têm a posição do governo dos Estados Unidos antes de, rapidamente, dizer que considera a notícia imprópria para o jornal. E segue em frente.
Na seqüência, entre uma imitação do presidente Lula e da fala de um argentino, passa a defender com grande empolgação uma matéria oferecida pela ‘praça’ de Belo Horizonte. Em Contagem, um juiz estava determinando a soltura de presos por falta de condições carcerárias. A argumentação do editor-chefe é sobre o perigo de criminosos voltarem às ruas. ‘Esse juiz é um louco’, chega a dizer, indignado. Nenhuma palavra sobre os motivos que levaram o magistrado a tomar essa medida e, muito menos, sobre a situação dos presídios no Brasil. A defesa da matéria é em cima do medo, sentimento que se espalha pelo País e rende preciosos pontos de audiência.
Sobre a greve dos peritos do INSS, que completava um mês - matéria oferecida por São Paulo -, o comentário gira em torno dos prejuízos causados ao órgão. ‘Quantos segurados já poderiam ter voltado ao trabalho e, sem perícia, continuam onerando o INSS’, ouve-se. E sobre os grevistas? Nada.
De Brasília é oferecida uma reportagem sobre ‘a importância do superávit fiscal para reduzir a dívida pública’. Um dos visitantes, o professor Gilson Schwartz, observou como a argumentação da proponente obedecia aos cânones econômicos ortodoxos e ressaltou a falta de visões alternativas no noticiário global.
Encerrada a reunião segue-se um tour pelas áreas técnica e jornalística, com a inevitável parada em torno da bancada onde o editor-chefe senta-se diariamente ao lado da esposa para falar ao Brasil. A visita inclui a passagem diante da tela do computador em que os índices de audiência chegam em tempo real. Líder eterna, a Globo pela manhã é assediada pelo Chaves mexicano, transmitido pelo SBT. Pelo menos é o que dizem os números do Ibope.
E no almoço, antes da sobremesa, chega o espelho do Jornal Nacional daquela noite (no jargão, espelho é a previsão das reportagens a serem transmitidas, relacionadas pela ordem de entrada e com a respectiva duração). Nenhuma grande novidade. A matéria dos presos libertados pelo juiz de Contagem abriria o jornal. E o óleo barato do Chávez venezuelano foi para o limbo.
Diante de saborosas tortas e antes de seguirem para o Projac - o centro de produções de novelas, seriados e programas de auditório da Globo em Jacarepaguá - os professores continuam ouvindo inúmeras referências ao Homer. A mesa é comprida e em torno dela notam-se alguns olhares constrangidos.
por Laurindo Lalo Lea Filho (Sociólogo e jornalista, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP)
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