quinta-feira, 30 de abril de 2009

Desenho animado do Manifesto comunista

É claro que assistir o desenho não substitui a leitura do próprio Manifesto comunista, mas pelo menos é uma introdução divertida. Está disponível no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=EaVbYyky-Bw

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Por que lutar pela liberdade alheia?

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro.

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário.

Depois prenderam os miseráveis

Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável.

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

Bertold Brecht


O preço da liberdade
por Contardo Calligaris

ASSISTINDO ao filme "Milk - A Voz da Igualdade", de Gus Van Sant, lembrei-me de um e-mail que recebi em abril de 2008. Era uma circular do www.boxturtlebulletin.com (um site sobre os direitos das minorias sexuais), que "comemorava" os 55 anos de um evento sinistro: em 1953, Dwight Eisenhower, presidente dos EUA, assinou um decreto pelo qual seriam despedidos todos os funcionários federais que fossem culpados de "perversão sexual". Essa lei permaneceu em vigor durante mais de 20 anos: milhares de americanos perderam seus empregos por causa de sua orientação sexual. Fato frequentemente esquecido (um pouco como foi esquecida, durante décadas, a perseguição dos homossexuais pelo nazismo), nos anos 50, no discurso do senador McCarthy, a caça aos "comunistas" se confundia com a caça aos homossexuais. Por exemplo, uma carta do secretário nacional do Partido Republicano (citada na circular) dizia: "Talvez tão perigosos quanto os comunistas propriamente ditos são os pervertidos escusos que infiltraram nosso governo nos últimos anos". Essa não era uma posição extrema: na época, a revista "Time" defendeu o projeto de despedir todos os homossexuais que trabalhassem para o governo federal.É nesse clima que, nos anos 70, em San Francisco, Milk se tornou o primeiro homossexual assumido a ser eleito para um cargo público. Poderia escrever sobre as razões que, quase invariavelmente, levam alguém a querer esmagar a liberdade de seus semelhantes. O segredo é que muitos preferem odiar nos outros alguma coisa que eles não querem reconhecer e odiar neles mesmos. E poderia contar a história de Roy Cohn, braço direito de McCarthy, que morreu, em 1984, odiando e escondendo sua homossexualidade e gritando ao mundo que a causa de sua morte não era a Aids (ele foi imortalizado por Al Pacino na peça e no filme "Anjos na América", de Tony Kushner). Mas, depois de assistir a "Milk", estou a fim de festejar o caminho percorrido em apenas meio século: o mundo é, hoje, um lugar mais habitável do que 50 anos atrás. Aconteceu graças a milhares de Harvey Milks e a milhões de outros que não precisaram ser nem homossexuais nem comunistas nem coisa assemelhada: eles apenas descobriram que só é possível proteger a liberdade da gente se entendermos que, para isso, é necessário defender a liberdade de nosso vizinho como se fosse a nossa. Nos anos 70, quase decorei a carta aberta que James Baldwin (escritor, negro e homossexual) endereçou a Angela Davis (jovem filósofa, negra e militante), quando ela estava sendo processada por um assassinato que não cometera, e o risco era grande que o processo acabasse em uma condenação "exemplar". Baldwin lembrava as diferenças de história, engajamento e pensamento entre ele e Davis, para concluir: "Devemos lutar pela tua vida como se fosse a nossa - ela é a nossa, aliás - e obstruir com nossos corpos o corredor que leva à câmara de gás. Porque, se eles te pegarem de manhã, voltarão para nós naquela mesma noite". Os direitos fundamentais não são direitos de grupo, eles valem para cada indivíduo singularmente, um a um. É óbvio que grupos particulares (constituídos por etnia, orientação sexual, crenças, etc.) podem e devem militar coletivamente pelos direitos de seus membros, mas, em uma sociedade de indivíduos, a liberdade de cada um, por mais "diferente" que ele seja, é condição da liberdade de todos. Por quê? Simples: se meu vizinho for impedido de ter a vida concreta que ele quer, mesmo sem violar as leis básicas da cidade, então meu jeito de viver poderá ser tolerado ou até permitido, mas ele não será nunca mais propriamente meu direito. "Milk" é um filme sobre um momento crucial na história das liberdades, mas não é um filme "arqueológico" . A gente sai do cinema com a sensação renovada de que a militância libertária ainda é a grande exigência do dia. Ótimo assim.

O direito de dormir

por Rubens Alves

NÃO EXISTE IMAGEM que mais tranquilize a alma que a imagem de uma criança adormecida. Seus olhinhos fechados dizem que o seu pequeno corpo está fechado dentro de si mesmo, num ninho de silêncio e escuridão.Mas é comum que essa tranquilidade seja precedida por uma luta contra o sono: a criança não quer dormir. Ela tem medo da escuridão. E o medo agita a alma.Foi pensando nisso que os músicos inventaram um tipo de música chamado "berceuse", que é uma canção doce destinada a ajudar as crianças a dormir. Ah! Como são lindas as "berceuses" de Brahms e de Schumann! Elas acalmam a criança amedrontada que mora em mim, põem os seus medos para dormir. E enquanto seus medos dormem, eu durmo bem longe deles...Mas isso que os músicos fizeram foi apenas instrumentalizar as canções que as mães de todo o mundo inventaram para fazer seus filhos dormirem. As "berceuses" acalmam as almas das crianças.Tudo o que existe precisa dormir. O simples existir cansa. A se acreditar nos poetas e nas crianças, até mesmo as coisas.Minha filha de quatro anos, olhando os vales e montanhas que se perdiam de vista nos horizontes de Campos de Jordão, fez-me essa pergunta metafísica: "Papai, as coisas não se cansam de serem coisas?"Fernando Pessoa teve suspeita semelhante e escreveu: "Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, há tanto tempo... Tenho dó delas. Não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas, como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, de ser, só de ser, o ser triste, brilhar ou sorrir...".Ele, poeta, estava cansado. Olhava para as estrelas que luziam havia tanto tempo e tinha dó delas. Elas deveriam estar muito cansadas. Suas pálpebras jamais se fechavam. Seus olhos estavam sempre abertos, sem poder dormir jamais...Pergunto-me então se não haverá um simples cansaço de viver. Será que não chega o momento em que a vida diz, das profundezas do seu ser, como um pedido de socorro aos que entendem a sua fala: "Estou cansada. Quero dormir o grande sono..."?Os especialistas na arte da tortura descobriram que uma das técnicas mais eficazes e discretas para se obter a confissão de um torturado era a de impedir que ele dormisse. Assentado numa poltrona confortável, o prisioneiro espera. O tempo passa em silêncio, sem interrogatório. Vem o sono. As pálpebras pesam e querem se fechar. Mas alguém que o vigia o sacode para impedir que ele durma. E assim o tempo vai passando. O desejo de dormir vai crescendo, as pálpebras pesam até um ponto insuportável. Nesse momento, a necessidade de dormir é tão terrível que o prisioneiro está pronto para confessar qualquer coisa só para poder dormir.Foi coisa parecida que fizeram com a Eluana Englaro, mulher italiana com 38 anos de idade, dos quais 17 em vida vegetativa. Seu sono sem despertar dizia que ela desejava dormir. Mas os torturadores, a ciência, as leis e a religião lhe negavam esse direito. Obrigavam-na a continuar viva contra a vontade do seu corpo, que ansiava pelo grande sono. Ligaram seu corpo a máquinas que impediam que ela dormisse. Vivia mecanicamente.Finalmente o direito de dormir lhe foi concedido. Fantasio que ela dormiu como uma criança, ouvindo a "berceuse" de Brahms.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Estão nos mentindo sobre os piratas

5/1/2009, Johann Hari: The Independent, UK
Quem imaginaria que em 2009, os governos do mundo declarariam uma nova Guerra aos Piratas? No instante em que você lê esse artigo, a Marinha Real Inglesa - e navios de mais 12 nações, dos EUA à China - navega rumo aos mares da Somália, para capturar homens que ainda vemos como vilãos de pantomima, com papagaio no ombro. Mais algumas horas e estarão bombardeando navios e, em seguida, perseguirão os piratas em terra, na terra de um dos países mais miseráveis do planeta. Por trás dessa estranha história de fantasia, há um escândalo muito real e jamais contado. Os miseráveis que os governos 'ocidentais' estão rotulando como "uma das maiores ameaças de nosso tempo" têm uma história extraordinária a contar - e, se não têm toda a razão, têm pelo menos muita razão. Os piratas jamais foram exatamente o que pensamos que fossem. Na "era de ouro dos piratas" - de 1650 a 1730 - o governo b ritânico criou, como recurso de propaganda, a imagem do pirata selvagem, sem propósito, o Barba Azul que ainda sobrevive. Muita gente sempre soube disso e muitos sempre suspeitaram da farsa: afinal, os piratas foram muitas vezes salvos das galés, nos braços de multidões que os defendiam e apoiavam. Por quê? O que os pobres sabiam, que nunca soubemos? O que viam, que nós não vemos? Em seu livro Villains Of All Nations, o historiador Marcus Rediker começa a revelar segredos muito interessantes. Se você fosse mercador ou marinheiro empregado nos navios mercantes naqueles dias se vivesse nas docas do East End de Londres, se fosse jovem e vivesse faminto-, você fatalmente acabaria embarcado num inferno flutuante, de grandes velas. Teria de trabalhar sem descanso, sempre faminto e sem dormir. E, se se rebelasse, lá estavam o todo-poderoso comandante e seu chicote [ing. the Cat O' Nine Tails, lit. "o Gato de nove rabos"]. Se você insistisse, era a prancha e os tubarões. E ao final de meses ou anos dessa vida, seu salário quase sempre lhe era roubado. Os piratas foram os primeiros que se rebelaram contra esse mundo. Amotinavam-se nos navios e acabaram por criar um modo diferente de trabalhar nos mares do mundo. Com os motins, conseguiam apropriar-se dos navios; depois, os piratas elegiam seus capitães e comandantes, e todas as decisões eram tomadas coletivamente; e aboliram a tortura. Os butins eram partilhados entre todos, solução que, nas palavras de Rediker, foi "um dos planos mais igualitários para distribuição de recursos que havia em todo o mundo, no século 18 ". Acolhiam a bordo, como iguais, muitos escravos africanos foragidos. Os piratas mostraram "muito claramente- e muito subversivamente- que os navios não precisavam ser comandados com opressão e brutalidade, como fazia a Marinha Real Inglesa." Por isso eram vistos como heróis românticos, embora sempre fossem ladrões improdutivo s.As palavras de um pirata cuja voz perde-se no tempo, um jovem inglês chamado William Scott, volta a ecoar hoje, nessa pirataria new age que está em todas as televisões e jornais do planeta. Pouco antes de ser enforcado em Charleston, Carolina do Sul, Scott disse: "O que fiz, fiz para não morrer. Não encontrei outra saída, além da pirataria, para sobreviver". O governo da Somália entrou em colapso em 1991. Nove milhões de somalianos passam fome desde então. E todos e tudo o que há de pior no mundo ocidental rapidamente viu, nessa desgraça, a oportunidade para assaltar o país e roubar de lá o que houvesse. Ao mesmo tempo, viram nos mares da Somália o local ideal onde jogar todo o lixo nuclear do planeta.Exatamente isso: lixo atômico. Nem bem o governo desfez-se (e os ricos partiram), começaram a aparecer misteriosos navios europeus no litoral da Somália, que jogavam ao mar contêineres e barris enormes. A população litorânea c omeçou a adoecer. No começo, erupções de pele, náuseas e bebês malformados. Então, com o tsunami de 2005, centenas de barris enferrujados e com vazamentos apareceram em diferentes pontos do litoral. Muita gente apresentou sintomas de contaminação por radiação e houve 300 mortes. Quem conta é Ahmedou Ould-Abdallah, enviado da ONU à Somália: "Alguém está jogando lixo atômico no litoral da Somália. E chumbo e metais pesados, cádmio, mercúrio, encontram-se praticamente todos." Parte do que se pode rastrear leva diretamente a hospitais e indústrias européias que, ao que tudo indica, entrega os resíduos tóxicos à Máfia, que se encarrega de "descarregá-los" e cobra barato. Quando perguntei a Ould-Abdallah o que os governos europeus estariam fazendo para combater esse 'negócio', ele suspirou: "Nada. Não há nem descontaminação, nem compensação, nem prevenção."Ao mesmo tempo, outros navios europeus vivem de pilhar os mares da Somália, a tacando uma de suas principais riquezas: pescado. A Europa já destruiu seus estoques naturais de pescado pela superexploração - e, agora, está superexplorando os mares da Somália. A cada ano, saem de lá mais de 300 milhões de atum, camarão e lagosta; são roubados anualmente, por pesqueiros ilegais. Os pescadores locais tradicionais passam fome. Mohammed Hussein, pescador que vive em Marka, cidade a 100 quilômetros ao sul de Mogadishu, declarou à Agência Reuters: "Se nada for feito, acabarão com todo o pescado de todo o litoral da Somália."Esse é o contexto do qual nasceram os "piratas" somalianos. São pescadores somalianos, que capturam barcos, como tentativa de assustar e dissuadir os grandes pesqueiros; ou, pelo menos, como meio de extrair deles alguma espécie de compensação. Os somalianos chamam-se "Guarda Costeira Voluntária da Somália". A maioria dos somalianos os conhecem sob essa designação. [Matéria importante sobre isso, em http://wardheernews.com/Articles_09/April/13_armada_not_solution_muuse.html : "The Armada is not a solution".] Pesquisa divulgada pelo site somaliano independente WardheerNews informa que 70% dos somalianos "aprovam firmemente a pirataria como forma de defesa nacional". Claro que nada justifica a prática de fazer reféns. Claro, também, que há gângsteres misturados nessa luta - por exemplo, os que assaltaram os carregamentos de comida do World Food Programme. Mas em entrevista por telefone, um dos líderes dos piratas, Sugule Ali disse: "Não somos bandidos do mar. Bandidos do mar são os pesqueiros clandestinos que saqueiam nosso peixe." William Scott entenderia perfeitamente. Por que os europeus supõem que os somalianos deveriam deixar-se matar de fome passivamente pelas praias, afogados no lixo tóxico europeu, e assistir passivamente os pe squeiros europeus (dentre outros) que pescam o peixe que, depois, os europeus comem elegantemente nos restaurantes de Londres, Paris ou Roma? A Europa nada fez, por muito tempo. Mas quando alguns pescadores reagiram e intrometeram-se no caminho pelo qual passa 20% do petróleo do mundo... imediatamente a Europa despachou para lá os seus navios de guerra. A história da guerra contra a pirataria em 2009 está muito mais claramente narrada por outro pirata, que viveu e morreu no século 4º AC. Foi preso e levado à presença de Alexandre, o Grande, que lhe perguntou "o que pretendia, fazendo-se de senhor dos mares." O pirata riu e respondeu: "O mesmo que você, fazendo-se de senhor das terras; mas, porque meu navio é pequeno, sou chamado de ladrão; e você, que comanda uma grande frota, é chamado de imperador." Hoje, outra vez, a grande frota européia lança-se ao mar, rumo à Somália - mas... quem é o ladrão?
http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/johann-hari/johann-hari-you-are-being-lied-to-about-pirates-1225817.html

terça-feira, 7 de abril de 2009

As desigualdades segundo Rousseau

por Maicol Martins de López Coelho


O trabalho argumentativo de Rousseau tem início com a concepção de dois tipos de desigualdade. A primeira, a desigualdade natural ou física, é estabelecida pela natureza e consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma, conforme expõe Rousseau. Já a segunda forma de desigualdade, a desigualdade moral ou política, depende de uma espécie de convenção e é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Instituída desta maneira, a desigualdade moral ou política “consiste nos vários privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros, como o serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles” [1].

É da desigualdade moral e política que Rousseau se ocupa ao longo do Discurso, e isso porque, para ele, é desnecessário se ocupar da fonte da desigualdade natural, visto que a resposta está na própria definição dessa desigualdade: é natural, e o que provém da natureza está, por isso mesmo, justificado. Portanto, é a desigualdade moral e política que merece ser objeto de investigação, e assim Rousseau exclui de antemão o segundo trecho da questão proposta pela Academia de Dijon: “é ela autorizada pela lei natural?”. Não, não é; cabe agora partir em busca de sua origem.

Essa origem não pode ser encontrada tendo como ponto de partida o momento de atual da humanidade. Rousseau defende, ainda nas primeiras palavras do Discurso, a necessidade de voltar ao estado de natureza para então se estudar os fundamentos da sociedade, mas não a partir dos conceitos conhecidos pela civilização. Para fazê-lo, deve-se “ir até a essência do homem para julgar a sua condição atual” [2] e, nesse sentido, estado de natureza é o estado da humanidade anterior à sociedade, primitiva e originária - e há que se fazê-lo sem atribuir, ao homem primitivo, atributos do homem civilizado. Sem esse cuidado, o que se faria seria apenas uma projeção do nosso momento presente sobre o homem pré-social e deste modo a busca pela origem da desigualdade estaria, desde seu princípio, distorcida.


Assim, Rousseau inicia a sua história hipotética da humanidade. Vemo-nos, então, perante os primeiros homens: “andando sobre dois pés, utilizando suas mãos como fazemos com as nossas, levando seu olhar a toda a natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do céu” [1]. A Rousseau não interessou discutir o desenvolvimento biológico do homem, ou o momento em que nos tornamos bípedes, por exemplo. O homem em estado de natureza possui os atributos físicos do homem civilizado (todavia, em virtude do advento da civilização, o homem civilizado perdeu o vigor e a robustez que possuía em estado de natureza), e não possui, por ora, “as faculdades artificiais que ele só pôde adquirir por meio de progressos muito longos” [1].

No estado de natureza os homens estão em situação de igualdade entre si. Diferenças quanto à força, velocidade, ou mesmo atributos intelectuais como a eloqüência e a sagacidade, por exemplo, não são relevantes para o estudo empreendido por Rousseau. Tais diferenças pertencem ao primeiro tipo de desigualdade, a desigualdade natural ou física – justificadas, conforme já exposto, pela lei natural. Desconsiderada essa forma de desigualdade, os homens estão em equilíbrio entre si e com a natureza.

Tal história hipotética do estado de natureza retrata um momento da humanidade ainda sem a história, e um momento em que a relação entre os homens não constitui uma relação em sociedade. Os homens estão isolados, e não têm a necessidade de recorrer a qualquer esforço para obter, da natureza abundante, os frutos que lhe propiciam sustento. Todavia os homens, iguais entre si, têm duas características que os diferenciam dos outros animais: a liberdade de optar por agir de forma diferente do que lhe aconselha a natureza – um animal, ao contrário, age somente conforme o que os instintos naturais lhe ditam – e a perfectibilidade, que é a faculdade de se aperfeiçoar e de desenvolver o seu potencial intelectual, construindo para si mesmo uma segunda natureza, distante da natureza primitiva.

Valendo-se dessas duas características, e vendo-se frente a contingências da natureza, como períodos de estiagem que tornam difícil o antes abundante acesso aos alimentos, o homem principiou a transformar seu estado. Surgiram a linha e o anzol, o arco e a flecha, as roupas de peles de animais, o controle do fogo; “as novas luzes, que resultaram desse desenvolvimento, aumentaram sua superioridade [do homem] sobre os demais animais, dando-lhe consciência delas” [1]. Esta pequena brecha na plenitude do estado de natureza deixará agora escoar as águas de uma história contida, conforme escreve Starobinsky em sua análise sobre o Discurso da desigualdade.

Resta, então, ir à sua origem, e Rousseau inicia a segunda parte do Discurso afirmando que

“o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar nele. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém.”” [1] Desta maneira é apresentada, ao leitor, a ruptura definitiva do homem com o estado de natureza. A propriedade privada é, conforme expõe Fortes, “o momento inaugural da sociedade e a primeira fonte das desigualdades”.

A noção de propriedade não é fruto da lei natural; é fruto da perfectibilidade do homem. O desenvolvimento da metalurgia e da agricultura (o ferro e o trigo, nas palavras de Rousseau) em resposta às contingências apresentadas pela natureza (resposta tornada possível pela perfectibilidade humana) traz, consigo, a necessidade da divisão do trabalho – pois é necessário nutrir os homens que se dedicam, agora, a fundir e forjar o ferro. Esse novo tipo de vínculo se dá por meio de troca de produtos, entre o ferreiro e o lavrador, que são objeto de apropriação exclusiva. Tal apropriação nutre as disparidades e aprofunda as desigualdades, e alguns acumularão mais riquezas que outros.

A desigualdade crescente e a propriedade privada reclamada pelos homens (um direito ainda precário) levam à insustentável guerra de todos contra todos, “e tornam necessário o estabelecimento de uma ordem civil. (...) Antes a ordem do que a violência; antes uma aparência de justiça que a anarquia: tal é o raciocínio que vai dar origem ao estado civil.” [3] Portanto, o pacto social firmado entre os homens, buscando pôr fim à ruína e à guerra generalizada, institui a sociedade.

A ordem social acima dos interesses antagônicos, afirma Starobinsky, “deverá resguardar os interesses superiores de todos os indivíduos e, levando-os a resolver suas querelas mediante a arbitragem e o acordo, substitui a guerra pela paz social”. Porém esse contrato, em lugar de gerar uma sociedade justa, vai corroborar a má sociedade, por ser pensado pelo rico. Visando proteger a propriedade, o contrato termina por consolidar a vantagem do rico e dá, à desigualdade, o valor de instituição. Esse contrato, que não tem sua fonte na vontade espontânea dos homens, é a nossa herança na atualidade, em que “a violência aberta da guerra de todos contra todos foi substituída pela violência hipócrita das vantagens para o rico” [3].

A relação entre os homens é regulada, agora, por um poder acima dos indivíduos, e a sociedade regida pelo pacto de associação adota regras gerais de conduta. Tais regras são facilmente desobedecidas, e as desordens que seguem impõem a necessidade de leis e de um governo, a fim de que o pacto social tenha mais eficácia. Fica estabelecida a sociedade controlada por um governo e sujeita a leis, porém é uma sociedade que pode degenerar na figura de um déspota, o homem que controla o poder e faz, de sua vontade, a lei. Desta forma a igualdade retornaria: abaixo do tirano, todos seriam iguais. Uma revolução pode devolver o governo a um formato melhor e mais justo.

Estão estabelecidos assim os fundamentos da sociedade. Por meio da construção hipotética destinada a narrar a história da desigualdade, Rousseau nos apresenta o que seria, para ele, a história da humanidade – e, dentro desta história, o momento do surgimento da desigualdade marca o momento em que passa a fazer sentido o registro, a documentação histórica da caminhada humana. Mas a narração da desigualdade vai além da história: a sociedade, da qual Rousseau nos apresenta sua idéia de concepção e de princípios, está tão ou mais ligada à desigualdade quanto a história. A história concebida por Rousseau narra a desigualdade como gênese e como marca indelével da sociedade.



Referências Bibliográficas

[2] FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: o bom selvagem. Col. Prazer em conhecer. São Paulo, FTD, 1989.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3a edição. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques. “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, in Rousseau. Col. Os Pensadores, 3a ed. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
[3] STAROBINSKY, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. São Paulo, Schwarcz, 1991.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Como funciona a ideologia segundo Marx

O texto abaixo é relativamente avançado, por isso deve ser lido após os dois outros sobre Marx que estão no blog.

Quando citamos o texto da Contribuição à crítica da economia política, vimos que Marx afirma que a consciência humana é sempre social e histórica, isto é, determinada pelas condições concretas de nossa existência. Isso não significa, porém, que nossas idéias representem a realidade tal como esta é em si mesma. Se assim fosse, seria incompreensível que os seres humanos, conhecendo as causas da exploração, da dominação, da miséria e da injustiça nada fizessem contra elas. Nossas idéias, historicamente determinadas, têm a peculiaridade de nascer a partir de nossa experiência social direta. A marca da experiência social é oferecer-se como uma explicação da aparência das coisas como se esta fosse a essência das próprias coisas. Não só isso. As aparências – ou o aparecer social à consciência – são aparências justamente porque nos oferecem o mundo de cabeça para baixo: o que é causa parece ser efeito, o que é efeito parece ser causa. Isso não se dá apenas no plano da consciência individual, mas sobretudo no da consciência social, isto é, no conjunto de idéias e explicações que uma sociedade oferece sobre si mesma. Feuerbach, como vimosxxiv, estudara esse fenômeno na religião, designando-o com o conceito de alienação. Marx interessa-se por esse fenômeno porque o percebeu em outras esferas da vida social, por exemplo, na política, que, como analisamos há pouco, leva os sujeitos sociais a aceitarem a dominação estatal porque não reconhecem quem são os verdadeiros criadores do Estado. Ele o observou também na esfera da economia: no capitalismo, os trabalhadores produzem todos os objetos existentes no mercado, todas as mercadorias; após
havê-las produzido, as entregam aos proprietários dos meios de produção, mediante um salário; quando vão ao mercado não conseguem comprar essas mercadorias. Olham os preços, contam o dinheiro e voltam para casa de mãos vazias, como se o preço das mercadorias existisse por si mesmo e como se elas estivessem à venda porque surgiram do nada e alguém as decidiu vender. Em outras palavras, os trabalhadores não só não se reconhecem como autores ou
produtores das mercadorias, mas ainda acreditam que elas valem o preço que custam e que não podem tê-las porque valem mais do que eles. Alienaram nos objetos seu próprio trabalho e não se reconhecem como produtores da riqueza e das coisas. A inversão entre causa e efeito, princípio e conseqüência, condição e condicionado leva à produção de imagens e idéias que pretendem representar a realidade. As imagens formam um imaginário social invertido – um conjunto de representações sobre os seres humanos e suas relações, sobre as coisas, sobre o
bem e o mal, o justo e o injusto, os bons e os maus costumes, etc. Tomadas como idéias, essas imagens ou esse imaginário social constituem a ideologia. A ideologia é um fenômeno histórico-social decorrente do modo de produção econômico. À medida que, numa formação social, uma forma determinada da divisão social se estabiliza, se fixa e se repete, cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva, que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais,
pelo estágio das forças produtivas e pela forma da propriedade. Cada um, por causa da fixidez e da repetição de seu lugar e de sua atividade, tende a considerá-los naturais (por exemplo, quando alguém julga que faz o que faz porque tem talento ou vocação natural para isso; quando alguém julga que, por natureza, os negros foram feitos para serem escravos; quando alguém julga que, por natureza, as mulheres foram feitas para a maternidade e o trabalho doméstico).
A naturalização surge sob a forma de idéias que afirmam que as coisas são como são porque é natural que assim sejam. As relações sociais passam, portanto, a serem vistas como naturais, existentes em si e por si, e não como resultados da ação humana. A naturalização é maneira pela qual as idéias produzem alienação social, isto é, a sociedade surge como uma força natural estranha e poderosa, que faz com que tudo seja necessariamente como é. Senhores por natureza, escravos por natureza, cidadãos por natureza, proprietários por natureza, assalariados por
natureza, etc. A divisão social do trabalho, iniciada na família, prossegue na sociedade e, à
medida que esta se torna mais complexa, leva a uma divisão entre dois tipos fundamentais de trabalho: o trabalho material de produção de coisas e o trabalho intelectual de produção de idéias. No início, essa segunda forma de trabalho social é privilégio dos sacerdotes; depois, torna-se função de professores e escritores, artistas e cientistas, pensadores e filósofos.
Os que produzem idéias separam-se dos que produzem coisas, formando um grupo à parte. Pouco a pouco, à medida que vão ficando cada vez mais distantes e separados dos trabalhadores materiais, os que pensam começam a acreditar que a consciência e o pensamento estão, em si e por si mesmos, separados das coisas materiais, existindo em si e por si mesmos. Passam a acreditar na independência entre a consciência e o mundo material, entre o pensamento e as coisas produzidas socialmente. Conferem autonomia à consciência e às idéias e, finalmente, julgam que as idéias não só explicam a realidade, mas produzem o real. Surge a ideologia como crença na autonomia das idéias e na capacidade de as idéias criarem a realidade.
Ora, o grupo dos que pensam – sacerdotes, professores, artistas, filósofos, cientistas – não nasceu do nada. Nasceu não só da divisão social do trabalho, mas também de uma divisão no interior da classe dos proprietários ou classe dominante de uma sociedade. Como conseqüência, o grupo pensante (os intelectuais) pensa com as idéias dos dominantes; julga, porém, que tais idéias são verdadeiras em si mesmas e transformam idéias de uma classe social
determinada em idéias uni versais e necessárias, válidas para a sociedade inteira.
Como o grupo pensante domina a consciência social, tem o poder de transmitir as idéias dominantes para toda a sociedade, através da religião, das artes, da escola, da ciência, da filosofia, dos costumes, das leis e do direito, moldando a consciência de todas as classes sociais e uniformizando o pensamento de todas as classes.
Os ideólogos são membros da classe dominante e das classes aliadas a ela, que, como intelectuais, sistematizam as imagens e as idéias sociais da classe dominante em representações coletivas, gerais e universais. Essas imagens e idéias não exprimem a realidade social, mas representam a aparência social do ponto de vista dos dominantes. São consideradas realidades autônomas que
produzem a realidade material ou social. São imagens e idéias postas como universais abstratos, uma vez que, concretamente, não correspondem à realidade social, dividida em classes sociais antagônicas. Assim, por exemplo, existem na sociedade, concretamente, capitalistas e trabalhadores, mas na ideologia aparece abstratamente o Homem. A ideologia torna-se propriamente ideologia quando não aparece sob a forma do mito, da religião e da teologia. Com efeito, nestes, a explicação sobre a origem dos seres humanos, da sociedade e do poder político encontra a causa fora e antes dos próprios humanos e de sua ação, localizando a causa originária nas divindades. A ideologia propriamente dita surge quando, no lugar das divindades,
encontramos as idéias: o Homem, a Pátria, a Família, a Escola, o Progresso, a Ciência, o Estado, o Bem, o Justo, etc. Com isso, podemos dizer que a ideologia é um fenômeno moderno, substituindo o papel que, antes dela, tinham os mitos e as teologias. Com a ideologia, a explicação sobre a origem dos homens, da sociedade e da política encontra-se nas ações humanas, entendidas como manifestação da consciência ou das idéias. Assim, por exemplo, julgar que o Estado se origina das idéias de Estado de Natureza, direito natural, contrato social e direito civil é supor que a consciência humana, independentemente das condições históricas materiais, pensou nessas idéias, julgou-as corretas e passou a agir por elas, criando a realidade designada e
representada por elas. Que faz a ideologia? Oferece a uma sociedade dividida em classes sociais
antagônicas, e que vivem na forma da luta de classes, uma imagem que permita a unificação e a identificação social – uma língua, uma religião, uma raça, uma nação, uma pátria, um Estado, uma humanidade, mesmos costumes. Assim, a função primordial da ideologia é ocultar a origem da sociedade (relações de produção como relações entre meios de produção e forças produtivas sob a divisão social do trabalho), dissimular a presença da luta de classes (domínio e exploração dos não-proprietários pelos proprietários privados dos meios de produção), negar as desigualdades sociais (são imaginadas como se fossem conseqüência de talentos diferentes, da preguiça ou da disciplina laboriosa) e oferecer a imagem ilusória da comunidade (o Estado) originada do contrato social entre homens livres e iguais. A ideologia é a lógica da dominação social e política.
Porque nascemos e somos criados com essas idéias e nesse imaginário social, não percebemos a verdadeira natureza de classe do Estado. A resposta à segunda pergunta de Marx, qual seja, por que a sociedade não percebe o vínculo interno entre poder econômico e poder político, pode ser respondida agora: por causa da ideologia.
por Marilena Chauí

Gênese da sociedade e do Estado segundo Marx

Marx indaga como os homens passaram da submissão ao poder pessoal de um senhor à obediência ao poder impessoal do Estado. Para responder a essa questão, é preciso desvendar a gênese do Estado. Os seres humanos, escrevem Marx e Engels, distinguem-se dos animais não
porque sejam dotados de consciência – animais racionais -, nem porque sejam naturalmente sociáveis e políticos – animais políticos -, mas porque são capazes de produzir as condições de sua existência material e intelectual. Os seres humanos são produtores: são o que produzem e são como produzem. A produção das condições materiais e intelectuais da existência não são escolhidas livremente pelos seres humanos, mas estão dadas objetivamente, independentemente de nossa vontade. Eis porque Marx diz que os homens fazem sua própria História, mas não a fazem em condições escolhidas por eles. São historicamente determinados pelas condições em que produzem suas vidas. A produção material e intelectual da existência humana depende de condições naturais (as do meio ambiente e as biológicas da espécie humana) e da procriação. Esta não é apenas um dado biológico (a diferença sexual necessária para a reprodução), mas já é social, pois decorre da maneira como se dá o intercâmbio e a cooperação entre os humanos e do modo como é simbolizada psicológica e culturalmente a diferença dos sexos. Por seu turno, a maneira como os humanos interpretam e realizam a diferença sexual determina o modo como
farão a divisão social do trabalho, distinguindo trabalhos masculinos, femininos, infantis e de velhice. A produção e a reprodução das condições de existência se realizam, portanto,
através do trabalho (relação com a Natureza), da divisão social do trabalho (intercâmbio e cooperação), da procriação (sexualidade e instituição da família) e do modo de apropriação da Natureza (a propriedade).
Esse conjunto de condições forma, em cada época, a sociedade e o sistema das formas produtivas que a regulam, segundo a divisão social do trabalho. Essa divisão, que começa na família, com a diferença sexual das tarefas, prossegue na distinção entre agricultura e pastoreio, entre ambas e o comércio, conduzindo à separação entre o campo e a cidade. Em cada uma das distinções operam novas divisões sociais do trabalho. A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação da existência da propriedade, ou seja, a separação entre as
condições e os instrumentos do trabalho e o próprio trabalho, incidindo, a seguir, sobre a forma de distribuição dos produtos do trabalho. A propriedade introduz a existência dos meios de produção (condições e instrumentos de trabalho) como algo diferente das forças produtivas (trabalho). Analisando as diferentes formas de propriedade, as diferentes formas de relação
entre meios de produção e forças produtivas, as diferentes formas de divisão social do trabalho decorrentes das formas de propriedade e das relações entre os meios de produção e as forças produtivas, é possível perceber a seqüência do processo histórico e as diferentes modalidades de sociedade. A propriedade começa como propriedade tribal e a sociedade tem a forma de
uma comunidade baseada na família (a comunidade é vista como a família ampliada à qual pertencem todos os membros do grupo). Nela prevalece a hierarquia definida por tarefas, funções, poderes e consumo. Essa forma da propriedade se transforma numa outra, a propriedade estatal, ou seja, propriedade do Estado, cujo dirigente determina o modo de relações dos sujeitos com ela: em certos casos (como na Pérsia ou na China e India antigas) o Estado é o proprietário único e permite as atividades econômicas mediante pagamento de tributos, impostos e taxas; em outros casos (Grécia, Roma), o Estado cede, mediante certas regras, a
propriedade às grandes famílias, que se tornam proprietárias privadas. A sociedade se divide, então, entre senhores e escravos. Nos grandes impérios orientais, os senhores se ocupam da guerra e da religião; na Grécia e em Roma, tornam-se cidadãos e ocupam-se da política, além de possuírem privilégios militares e religiosos; vivem nas cidades e em luta permanente com os que
permaneceram no campo, bem como com os homens livres que trabalham nas atividades urbanas (artesanato e comércio) e com os escravos (do campo e da cidade). A terceira forma de propriedade é a feudal, apresentando-se como propriedade privada da terra pelos senhores e propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres, membros das corporações dos burgos. A terra é trabalhada por servos da gleba e a sociedade se estrutura pela divisão entre nobreza fundiária e servos (no campo) e artesãos livres e aprendizes (na cidade). Entre elas surge uma figura intermediária: o comerciante. As lutas entre comerciantes e nobres, o
desenvolvimento dos burgos, do artesanato e da atividade comercial conduzem à mudança que conhecemos: a propriedade privada capitalista. Essa nova forma de propriedade possui características inéditas e é uma verdadeira revolução econômica, porque realiza a separação integral entreproprietários dos meios de produção e forças produtivas, isto é, entre as
condições e os instrumentos de trabalho e o próprio trabalho. Os proprietários privados possuem meios, condições e instrumentos do trabalho, possuem o controle da distribuição e do consumo dos produtos. No outro pólo social, encontram-se os trabalhadores como massa de assalariados inteiramente expropriada dos meios de produção, possuindo apenas a força do trabalho,
colocada à disposição dos proprietários dos meios de produção, no mercado de compra e venda da mão-de-obra.
Essas diferentes formas da propriedade dos meios de produção e das relações com as forças produtivas ou de determinações sociais decorrentes da divisão social do trabalho constituem os modos de produção. Marx e Engels observaram que, a cada modo de produção, a consciência dos
seres humanos se transforma. Descobriram que essas transformações constituem a maneira como, em cada época, a consciência interpreta, compreende e representa para si mesma o que se passa nas condições materiais de produção e reprodução da existência. Por esse motivo, afirmaram que, ao contrário do que se pensa, não são as idéias humanas que movem a História, mas são as condições históricas que produzem as idéias.
Na obra Contribuição à crítica da economia política, Marx escreve:
O conjunto das relações de produção (que corresponde ao grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais) constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas
formas de consciência social. O modo de reprodução de vida material determina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência.
É por afirmar que a sociedade se constitui a partir de condições materiais de produção e da divisão social do trabalho, que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações naquelas condições materiais e naquela divisão do trabalho, e que a consciência humana é determinada a pensar as idéias que pensa por causa das condições materiais instituídas pela sociedade, que o pensamento de Marx e Engels é chamado de materialismo histórico.
Materialismo por que somos o que as condições materiais (as relações sociais de produção) nos determinam a ser e a pensarxxii. Histórico porque a sociedade e a política não surgem de decretos divinos nem nascem da ordem natural, mas dependem da ação concreta dos seres humanos no tempo. A História não é um progresso linear e contínuo, uma seqüência de causas e
efeitos, mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção (a forma da propriedade) e as forças produtivas (o trabalho, seus instrumentos, as técnicas). A luta de classes exprime tais contradições e é o motor da História. Por afirmar que o processo histórico é movido por contradições sociais, o materialismo histórico é dialético. As relações sociais de produção não são responsáveis apenas pela gênese da sociedade, mas também pela do Estado, que Marx designa como superestrutura jurídica e política, correspondente à estrutura econômica da sociedade. Qual a gênese do Estado? Conflitos entre proprietários privados dos meios de produção e contradições entre eles e os não-proprietários (escravos, servos, trabalhadores livres). Os conflitos entre proprietários e as contradições entre
proprietários e não-proprietários aparecem para a consciência social sob a forma de conflitos e contradições entre interesses particulares e o interesse geral. Aparecem dessa maneira, mas não são realmente como aparecem. Em outras palavras, onde há propriedade privada, há interesse privado e não pode haver interesse coletivo ou geral. Os proprietários dos meios de produção podem ter interesses comuns, pois necessitam do intercâmbio e da cooperação para manter e fazer crescer a propriedade de cada um. Assim, embora estejam em concorrência e competição,
precisam estabelecer certas regras pelas quais não se destruam reciprocamente nem às suas propriedades. Sabem também que não poderão resolver as contradições com os não-proprietários e que estes podem, por revoltas e revoluções populares, destruir a
propriedade privada. É preciso, portanto, que os interesses comuns entre os proprietários dos meios de produção e a força para dominar os não-proprietários sejam estabelecidos de maneira tal que pareçam corretos, legítimos e válidos para todos. Para isso, criam o Estado como poder separado da sociedade, portador do direito e das leis, dotado de força para usar a violência na repressão de tudo quanto pareça perigoso à estrutura econômica existente.
No caso do poder despótico, a legitimação é feita pela divinização do senhor: o detentor do poder (um indivíduo, uma família ou um grupo de famílias) apresenta-se como filho de um humano e de uma divindade, isto é, o nascimento justifica o poderio. No caso do poder teocrático, a legitimação é feita pela sacralização do governante: o detentor do poder o recebe diretamente de Deus.
No caso das repúblicas (democracia grega, o senado e o povo romano), a legitimação é feita pela instituição do direito e das leis que definem quem pode ser cidadão e participar do governo.
Nos três casos, a divisão social aparece como hierarquia divina e/ou natural, que justifica a exclusão dos não-proprietários do poder e sobretudo estabelece princípios (divinos ou naturais) para a submissão e a obediência, transformadas em obrigações.
No caso do Estado moderno, como vimos, as idéias de Estado de Natureza, direito natural, contrato social e direito civil fundam o poder político na vontade dos proprietários dos meios de produção, que se apresentam como indivíduos livres e iguais que transferem seus direitos naturais ao poder político, instituindo a autoridade do Estado e das leis. Eis por que o Estado precisa aparecer como expressão do interesse geral e não como senhorio particular de alguns poderosos. Os não-proprietários podem recusar, como fizeram inúmeras vezes na História, o poder pessoal visível de um senhor, mas não o fazem quando se trata de um poder distante, separado, invisível e impessoal como o do Estado. Julgando que este se encontra a serviço
do bem comum, da justiça, da ordem, da lei, da paz e da segurança, aceitam a dominação, pois não a percebem como tal. Resta a segunda indagação de Marx, qual seja, por que os sujeitos sociais não percebem o vínculo entre o poder econômico e o poder político? Porque a ideologia mascara este vínculo (veja próxima postagem)

por Marilena Chauí, no livro O Convite à filosofia