por Maicol Martins de López Coelho
O trabalho argumentativo de Rousseau tem início com a concepção de dois tipos de desigualdade. A primeira, a desigualdade natural ou física, é estabelecida pela natureza e consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma, conforme expõe Rousseau. Já a segunda forma de desigualdade, a desigualdade moral ou política, depende de uma espécie de convenção e é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Instituída desta maneira, a desigualdade moral ou política “consiste nos vários privilégios de que gozam alguns em prejuízo de outros, como o serem mais ricos, mais poderosos e homenageados do que estes, ou ainda por fazerem-se obedecer por eles” [1].
É da desigualdade moral e política que Rousseau se ocupa ao longo do Discurso, e isso porque, para ele, é desnecessário se ocupar da fonte da desigualdade natural, visto que a resposta está na própria definição dessa desigualdade: é natural, e o que provém da natureza está, por isso mesmo, justificado. Portanto, é a desigualdade moral e política que merece ser objeto de investigação, e assim Rousseau exclui de antemão o segundo trecho da questão proposta pela Academia de Dijon: “é ela autorizada pela lei natural?”. Não, não é; cabe agora partir em busca de sua origem.
Essa origem não pode ser encontrada tendo como ponto de partida o momento de atual da humanidade. Rousseau defende, ainda nas primeiras palavras do Discurso, a necessidade de voltar ao estado de natureza para então se estudar os fundamentos da sociedade, mas não a partir dos conceitos conhecidos pela civilização. Para fazê-lo, deve-se “ir até a essência do homem para julgar a sua condição atual” [2] e, nesse sentido, estado de natureza é o estado da humanidade anterior à sociedade, primitiva e originária - e há que se fazê-lo sem atribuir, ao homem primitivo, atributos do homem civilizado. Sem esse cuidado, o que se faria seria apenas uma projeção do nosso momento presente sobre o homem pré-social e deste modo a busca pela origem da desigualdade estaria, desde seu princípio, distorcida.
Assim, Rousseau inicia a sua história hipotética da humanidade. Vemo-nos, então, perante os primeiros homens: “andando sobre dois pés, utilizando suas mãos como fazemos com as nossas, levando seu olhar a toda a natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do céu” [1]. A Rousseau não interessou discutir o desenvolvimento biológico do homem, ou o momento em que nos tornamos bípedes, por exemplo. O homem em estado de natureza possui os atributos físicos do homem civilizado (todavia, em virtude do advento da civilização, o homem civilizado perdeu o vigor e a robustez que possuía em estado de natureza), e não possui, por ora, “as faculdades artificiais que ele só pôde adquirir por meio de progressos muito longos” [1].
No estado de natureza os homens estão em situação de igualdade entre si. Diferenças quanto à força, velocidade, ou mesmo atributos intelectuais como a eloqüência e a sagacidade, por exemplo, não são relevantes para o estudo empreendido por Rousseau. Tais diferenças pertencem ao primeiro tipo de desigualdade, a desigualdade natural ou física – justificadas, conforme já exposto, pela lei natural. Desconsiderada essa forma de desigualdade, os homens estão em equilíbrio entre si e com a natureza.
Tal história hipotética do estado de natureza retrata um momento da humanidade ainda sem a história, e um momento em que a relação entre os homens não constitui uma relação em sociedade. Os homens estão isolados, e não têm a necessidade de recorrer a qualquer esforço para obter, da natureza abundante, os frutos que lhe propiciam sustento. Todavia os homens, iguais entre si, têm duas características que os diferenciam dos outros animais: a liberdade de optar por agir de forma diferente do que lhe aconselha a natureza – um animal, ao contrário, age somente conforme o que os instintos naturais lhe ditam – e a perfectibilidade, que é a faculdade de se aperfeiçoar e de desenvolver o seu potencial intelectual, construindo para si mesmo uma segunda natureza, distante da natureza primitiva.
Valendo-se dessas duas características, e vendo-se frente a contingências da natureza, como períodos de estiagem que tornam difícil o antes abundante acesso aos alimentos, o homem principiou a transformar seu estado. Surgiram a linha e o anzol, o arco e a flecha, as roupas de peles de animais, o controle do fogo; “as novas luzes, que resultaram desse desenvolvimento, aumentaram sua superioridade [do homem] sobre os demais animais, dando-lhe consciência delas” [1]. Esta pequena brecha na plenitude do estado de natureza deixará agora escoar as águas de uma história contida, conforme escreve Starobinsky em sua análise sobre o Discurso da desigualdade.
Resta, então, ir à sua origem, e Rousseau inicia a segunda parte do Discurso afirmando que
“o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditar nele. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém.”” [1] Desta maneira é apresentada, ao leitor, a ruptura definitiva do homem com o estado de natureza. A propriedade privada é, conforme expõe Fortes, “o momento inaugural da sociedade e a primeira fonte das desigualdades”.
A noção de propriedade não é fruto da lei natural; é fruto da perfectibilidade do homem. O desenvolvimento da metalurgia e da agricultura (o ferro e o trigo, nas palavras de Rousseau) em resposta às contingências apresentadas pela natureza (resposta tornada possível pela perfectibilidade humana) traz, consigo, a necessidade da divisão do trabalho – pois é necessário nutrir os homens que se dedicam, agora, a fundir e forjar o ferro. Esse novo tipo de vínculo se dá por meio de troca de produtos, entre o ferreiro e o lavrador, que são objeto de apropriação exclusiva. Tal apropriação nutre as disparidades e aprofunda as desigualdades, e alguns acumularão mais riquezas que outros.
A desigualdade crescente e a propriedade privada reclamada pelos homens (um direito ainda precário) levam à insustentável guerra de todos contra todos, “e tornam necessário o estabelecimento de uma ordem civil. (...) Antes a ordem do que a violência; antes uma aparência de justiça que a anarquia: tal é o raciocínio que vai dar origem ao estado civil.” [3] Portanto, o pacto social firmado entre os homens, buscando pôr fim à ruína e à guerra generalizada, institui a sociedade.
A ordem social acima dos interesses antagônicos, afirma Starobinsky, “deverá resguardar os interesses superiores de todos os indivíduos e, levando-os a resolver suas querelas mediante a arbitragem e o acordo, substitui a guerra pela paz social”. Porém esse contrato, em lugar de gerar uma sociedade justa, vai corroborar a má sociedade, por ser pensado pelo rico. Visando proteger a propriedade, o contrato termina por consolidar a vantagem do rico e dá, à desigualdade, o valor de instituição. Esse contrato, que não tem sua fonte na vontade espontânea dos homens, é a nossa herança na atualidade, em que “a violência aberta da guerra de todos contra todos foi substituída pela violência hipócrita das vantagens para o rico” [3].
A relação entre os homens é regulada, agora, por um poder acima dos indivíduos, e a sociedade regida pelo pacto de associação adota regras gerais de conduta. Tais regras são facilmente desobedecidas, e as desordens que seguem impõem a necessidade de leis e de um governo, a fim de que o pacto social tenha mais eficácia. Fica estabelecida a sociedade controlada por um governo e sujeita a leis, porém é uma sociedade que pode degenerar na figura de um déspota, o homem que controla o poder e faz, de sua vontade, a lei. Desta forma a igualdade retornaria: abaixo do tirano, todos seriam iguais. Uma revolução pode devolver o governo a um formato melhor e mais justo.
Estão estabelecidos assim os fundamentos da sociedade. Por meio da construção hipotética destinada a narrar a história da desigualdade, Rousseau nos apresenta o que seria, para ele, a história da humanidade – e, dentro desta história, o momento do surgimento da desigualdade marca o momento em que passa a fazer sentido o registro, a documentação histórica da caminhada humana. Mas a narração da desigualdade vai além da história: a sociedade, da qual Rousseau nos apresenta sua idéia de concepção e de princípios, está tão ou mais ligada à desigualdade quanto a história. A história concebida por Rousseau narra a desigualdade como gênese e como marca indelével da sociedade.
Referências Bibliográficas
[2] FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: o bom selvagem. Col. Prazer em conhecer. São Paulo, FTD, 1989.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3a edição. São Paulo, Martins Fontes, 1999.
[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques. “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, in Rousseau. Col. Os Pensadores, 3a ed. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
[3] STAROBINSKY, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo. São Paulo, Schwarcz, 1991.
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