quarta-feira, 26 de maio de 2010

Violência e banalidade do mal

Publicado em 14 de março de 2010 na revista cult

Em Arendt, o problema do mal é abordado por uma perspectiva política e não moral ou religiosa

Odílio Alves Aguiar

Jerome Kohn, assistente de ensino e intérprete de Hannah Arendt, escreveu que o problema do mal é o principal eixo argumentativo a atravessar toda a reflexão político-filosófica arendtiana. A base da reflexão da pensadora é a experiência totalitária. Ao ligar essa experiência ao mal, Hannah Arendt apontou o paroxismo da violência perpetrada pelos governos totalitários e mostrou a insuficiência das teorias e categorias científicas, econômicas e políticas tradicionais para captar e explicar a novidade do que estava acontecendo. O domínio total é mais opressor que a escravidão e a tirania, é mais destruidor que a miséria econômica e o expansionismo territorial. O controle total pretende atingir e capturar os humanos; adota, como critério de legitimidade governamental, a redução dos homens a seres naturais. O recurso à categoria do mal é uma forma de tentar compreender o inexplicável e visa aproximar-se reflexivamente da primeira tentativa de constituição de uma forma de governo, no Ocidente, baseada na purificação e no extermínio dos seres humanos. Trata-se, assim, de pensar o mal nas sociedades secularizadas sem apelar ao teor teológico-religioso.

O tema do mal, em Arendt, não tem como pano de fundo a malignidade, a perversão ou o pecado humano. A novidade da sua reflexão reside justamente em evidenciar que os seres humanos podem realizar ações inimagináveis, do ponto de vista da destruição e da morte, sem qualquer motivação maligna. O pano de fundo do exame da questão, em Arendt, é o processo de naturalização da sociedade e de artificialização da natureza ocorrido com a massificação, a industrialização e a tecnificação das decisões e das organizações humanas na contemporaneidade. O mal é abordado, desse modo, na perspectiva ético-política e não na visão moral ou religiosa.

Faz-se necessário esclarecer, antes de avançarmos, que Hannah Arendt nunca sistematizou suas reflexões sobre o assunto. Colhemos os elementos do seu ponto de vista nas seguintes obras: Origens do totalitarismo (1951), Eichmann em Jerusalém (1963), A vida do espírito (1971) e em outros textos publicados postumamente. Essa bibliografia está muito bem articulada no livro de Nádia Souki intitulado Hannah Arendt e a banalidade do mal (Ed. UFMG).

Contingência do mal
Em Origens do Totalitarismo, o tema aparece no cotejamento e prolongamento da reflexão kantiana sobre o mal radical. Kant percebeu que o mal pode ter origem não nos instintos ou na natureza pecaminosa do homem e, sim, nas faculdades racionais que o fazem livre. Dessa forma, o mal não possui dimensão ontológica, mas contingencial. Ele acontece a partir da interação e da reação das faculdades espirituais humanas às suas circunstâncias. O mal radical, em Kant, é uma espécie de rejeição consciente ao bem e está atrelado, ainda, ao uso dos homens como meios, instrumentos, e não fim em si mesmo. Arendt retém esse aspecto da reflexão kantiana, acrescentando-lhe a dimensão histórico-política do seu próprio tempo. Nela, o radicalismo vai relacionar-se à novidade e ao assombro diante das informações chegadas às suas mãos nos Estados Unidos, em 1943, sobre Auschwitz. Ela associou o mal radical aos campos de concentração, base de sustentação da nova forma de governo em gestação. Isso faz o assunto ultrapassar a questão judaica, embora seja incompreensível sem ela. Holocausto é pouco para captar o que surgiu, pois não se trata apenas da execução de judeus. Esse algo a mais faz sua obra dizer coisas relevantes para todos nós. O mal radical está associado ao totalitarismo, organização governamental e sistemática da vida dos homens prescindindo do discurso e da ação, considerando-os meros animais, controláveis e descartáveis. É uma forma de governar sustentada, explicitamente, no pressuposto do extermínio de setores da população e não apenas na sua opressão ou instrumentalização. Isso não diz respeito apenas à exclusão sócio-política do criminoso, nem à eliminação do opositor ou inimigo, mas a atualização da lógica da descartabilidade humana inerente àquelas formas de governo.
Ao considerar a população apenas do ponto de vista biológico, laborante, o governo total tratou de eliminar qualquer instituição ou vínculo humano que pudesse dar abrigo à solidariedade, à ação e à diferenciação entre os indivíduos. Destruindo o mundo comum (partidos, família, arte, religiões, sindicatos, justiça e outras formas de organização), no qual as pessoas poderiam ser amparadas e respeitadas, os governos totalitários constituíram-se baseados na propaganda, na espetacularização, na atomização, na solidão, na padronização, na coletivização das massas e na redução do homem a animal, ocupado exclusivamente com a sua reprodução biológica. Os regimes totais conceberam os homens apenas como seres vivos e prolongaram esse critério na escolha dos merecedores da vida. O grande temor, presente nos textos da pensadora, é que o extermínio, a nova terapia contra os humanos considerados impuros e indignos, inerente aos governos totalitários, viesse a constituir-se em elemento imanente aos governos e sociedades contemporâneas. Isso levou Arendt a afirmar: “talvez os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autêntica – embora não necessariamente a mais cruel – quando o totalitarismo pertencer ao passado”.

Cumprir o seu dever
A questão do mal retorna, em Arendt, quando ela aceita o convite de uma revista americana para fazer a cobertura do julgamento de Eichmann ocorrido em Jerusalém, em 1962. As questões jurídicas e filosóficas envolvidas nesse caso foram muito bem debatidas no livro Justiça em tempos sombrios de Christina Ribas (Ed. UEPG). Se, ao mal radical, Arendt associa o surgimento e a prática da violência extremada e sistemática contra setores da população por parte de uma nova forma de governo, ao mal banal, ela vai relacionar a prática dos agentes encarregados de executar as ordens governamentais. Quem foi Eichmann? Trata-se do principal responsável pelo envio dos judeus aos campos de concentração. Em todos os relatos de Arendt, verificamos uma profunda perplexidade com a forma de Eichmann falar das suas atividades como carrasco nazista. Ele usava clichês, palavras de ordens e a moral da obrigação do bom funcionário para justificar o seu comportamento. Para ele, em nenhum momento, podia ser enquadrado como criminoso, pois apenas cumpria a sua obrigação, o seu dever. Eichmann era um ser humano normal, bom pai de família, não possuía nenhum ódio ao povo judeu e não era motivado por uma vontade de transgredir ou por qualquer outro tipo de maldade. No entanto, viabilizou o assassinato de milhões de pessoas. Foi justamente isso que levou Arendt a usar o termo banalidade do mal. Estamos diante de um tipo de mal sem relação com a maldade, uma patologia ou uma convicção ideológica. Trata-se do mal como causa do mal, pois não tem outro fundamento. O praticante do mal banal não conhece a culpa. Ele age semelhante a uma engrenagem maquínica do mal. O mal banal parece ser um fungo, cresce e se espalha como causa de si mesmo, sem raiz alguma e atinge contingentes enormes das populações humanas em diversos lugares da terra.
A pergunta de Arendt, ao se deparar com os depoimentos de Eichmann, foi: “o que faz um ser humano normal realizar os crimes mais atrozes como se não estivesse fazendo nada demais?” A resposta está no mal banal. Trata-se de uma prática do mal promissora nas sociedades massificadas, possuidoras de organizações econômicas, políticas e sociais potentes, nas quais os seres humanos tendem a se sentir sem poder, solitários, submissos e quase condicionados. Vivendo apenas como animal laborante, os homens tecnificam e burocratizam as suas obrigações e se tornam, desse modo, incapazes de pensar as conseqüências das ordens dadas pelos seus superiores ou grupos. Eichmann, segundo Arendt, agiu igual ao cão de Pavlov, que foi condicionado a salivar mesmo sem ter fome. Ele não praticou o mal motivado pela ambição, ódio ou doença psíquica. Nada disso foi encontrado em Eichmann. A única coisa que chamou atenção de Arendt foi a sua incapacidade de pensar. Ao renunciar ao pensamento, Eichmann destituiu-se da condição de ser dotado de espírito que lhe possibilitaria o descondicionamento e, assim, dizer: não, isso eu não posso.

O mal como renúncia à capacidade de julgar
O mal banal caracteriza-se pela ausência do pensamento. Essa ausência provoca a privação de responsabilidade. O praticante do mal banal submete-se de tal forma a uma lógica externa que não enxerga a sua responsabilidade nos atos que pratica. Age como mera engrenagem. Não se interroga sobre o sentido da sua ação ou dos acontecimentos ao seu redor. Buscar o sentido não é apenas se informar, não é algo da ordem do conhecimento nem da aferição da eficácia. Trata-se de medir e buscar a estatura do que está acontecendo a partir do crivo da dignificação dos envolvidos. Quem pensa resiste à pratica do mal. A busca da significação encontra muita dificuldade quando a pressa, os mecanismos e procedimentos técnicos, burocráticos e os processos econômicos auto-propelidos engolfam tudo. O praticante do mal banal renuncia à capacidade pertencente aos humanos de mudar o curso das ações rotineiras através do exercício da vontade própria. Repete heteronomamente o seu comportamento. Não se reconhece dotado de vontade, capaz de iniciar, fundar e começar. Ele também não exercita a habilidade, peculiar aos homens, de falar e comunicar o que está vendo e sentindo. Vive sem compartilhar o mundo com os outros. Renuncia, desse modo, à faculdade do julgamento. Em suma, recusa-se a viver com os dons provenientes das suas faculdades espirituais: pensar, querer e julgar.
Ao relacionar o mal ao vazio reflexivo, Arendt aponta para uma possível compreensão da violência nas sociedades contemporâneas. Nessas sociedades, o mal realiza-se na banalidade, na injustiça e nas radicais práticas de violência contra apátridas, imigrantes, mulheres, desempregados, índios, negros, crianças, idosos e a natureza.
A partir dessas teses, vemos emergir, na autora, formas de contraposição ao mal radical e ao mal banal. Na primeira, a autora propõe a recuperação da política, do mundo comum, principalmente, em A condição humana (1958); na segunda, aponta a retomada da dimensão ética em A vida do espírito (1971). Pensar, julgar e querer desembocam no cuidado com o mundo comum, no amor mundi, para usar a terminologia de Arendt, no respeito aos espaços onde os homens podem circular e se sentirem amparados pela presença dos iguais e dos diferentes. Nesse mundo comum os homens mostram que nasceram para começar e não para morrer

domingo, 23 de maio de 2010

Links sobre o contratualismo

Seguem abaixo alguns links que servirão de socorro aos alunos interessados em escrever sobre o contratualismo. Vocês precisarão fazer pequenas pesquisas no interior destes blogs. Bom trabalho.
http://hermes-embuscadesophia.blogspot.com/
http://afilosofia.no.sapo.pt/referencias.htm
http://criticanarede.com/html/teoriacontratualista.html

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Permancerão impunes os torturadores? Talvez não...

Embora proferida pela mais alta corte de Justiça do País, a decisão tomada ontem sobre o alcance da Lei de Anistia não representa o ponto final do debate. Ele pode ser retomado em cortes internacionais. Na verdade isso já ocorre. Neste momento o Brasil é réu em uma ação de responsabilidade na Corte Interamericana de Direitos Humanos, acusado de detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de integrantes da Guerrilha do Araguaia, movimento armado sufocado pelo regime militar nos anos 70. A próxima audiência do caso está agendada para o dia 20.

O debate ampliado é possível porque o Brasil faz parte de instituições internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), e endossa declarações segundo as quais o julgamento de certos crimes transcende a fronteira da legislação nacional. São declarações que limitam, portanto, o poder soberano do Estado.

Esses conceitos ganharam corpo no fim da Segunda Guerra Mundial, a partir das ações do Tribunal de Nuremberg, onde foram julgados os crimes cometidos pelos agentes do regime nazista. Definiu-se na época a chamada categoria dos crimes contra a humanidade - entre os quais figuram ações cometidas pelo Estado contra seus próprios cidadãos por motivos políticos, tais como tortura, assassinato, ocultação de cadáveres.

Hoje, quando o cidadão não obtém justiça em seu país, nos casos de crimes contra a humanidade, pode recorrer às cortes internacionais. Como fizeram os familiares dos guerrilheiros.

Acionadas, essas cortes tendem a considerar os crimes imprescritíveis. Também não aceitam a chamada autoanistia, na qual o regime autoritário perdoa atos de seus próprios agentes.

Um caso bem conhecido que trouxe à tona essa compreensão mais ampla sobre violações de direitos humanos envolveu o general chileno Augusto Pinochet, líder do golpe militar que, em 1973, derrubou o presidente Salvador Allende e impôs uma ditadura ao país. Ele deixou o poder em 1990 sob a proteção de leis nacionais que impediam sua responsabilização por crimes ocorridos em seu governo. Em outubro de 1998, porém, durante uma visita à Inglaterra, foi detido pela Scotland Yard, a pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón, que o responsabilizava, baseado em acordos internacionais, por tortura e desaparecimento de cidadãos espanhóis durante a ditadura.

Pinochet foi solto logo depois. Sua prisão evidenciou, no entanto, o aumento da pressão internacional nas violações de direitos humanos e influenciou o debate dos chileno sobre os crimes.

Os ministros do STF não ignoram a questão. Alguns deixaram isso claro na hora de declarar as razões do seu voto.

Estado de São Paulo - 30 de abril

domingo, 9 de maio de 2010

Suprema Impunidade

Decisão do STF equivale torturadores e torturados, regride no tempo e legitima ditadura militar.


Paulo Abrão*

As relações entre a Política e o Direito são íntimas. No ato de criação das leis a relação entre eles é insuprimível e no momento da sua interpretação-aplicação pelos tribunais uma separação é institucionalmente possível. Por isso, são recorrentes algumas tensões e o debate sobre a lei de anistia é um exemplo privilegiado para compreendê-las.

O STF declarou válida a interpretação de que há uma anistia bilateral na lei de 1979, reeditada na EC 26/85, denominada convocatória da constituinte. Afirmou que se trata de um acordo político fundante da Constituição Democrática de 1988 e que somente o Poder Legislativo pode revê-lo.

Em primeira análise, parece que o efeito prático é o de que o Supremo “apenas” negou o direito à proteção judicial para as vítimas da ditadura. A decisão, no entanto, incorre em outros efeitos para a democracia e que merecem ser debatidos:

1. Afirmou que a atribuição do Congresso em matéria de anistia é ilimitada e não fica submetida a qualquer outro poder, sequer ao crivo da Justiça. Lesionou-se o princípio fundamental da independência do juiz no Estado de Direito.

2. Autorizou que possíveis acordos políticos tenham o condão de afastar o império da lei e as garantias às liberdades individuais. Regredindo ao medievo, entendeu que a soberania não está limitada pelo direito e que a democracia pode ser forjada sem um compromisso com os direitos humanos. Dissociou-se democracia e direitos humanos no Brasil.

3. Promoveu uma equivalência descabida entre os atos dos torturadores e dos torturados, compreendendo que a anistia deve ser necessariamente mútua. Conectou a tortura com o crime político, admitindo seu uso legítimo para os fins de repressão política, sem cogitar nenhum juízo de valor ou de correspondência entre meio e fins. Apregoou-se uma ética utilitarista e desvalorizou-se o direito de resistência aos regimes autoritários.

4. Desconheceu o conceito de crimes de lesa-humanidade, um rol delimitado de atos contrários aos direitos humanos inadmissíveis em nenhuma hipótese e, por isso, impassíveis de anistia e imprescritíveis. Ignorou-se o direito internacional como fonte do direito e absteve-se de impor um limite ético mínimo para as relações humanas, desalinhando o Brasil da melhor tradição ética ocidental, desde Nuremberg.

5. Compreendeu o movimento social histórico de reivindicação pela anistia ampla, geral e irrestrita nas ruas, como um apelo ao esquecimento e ao perdão aos torturadores. Fez-se uso político da memória e incorreu em perigoso revisionismo histórico.

6. Defendeu que um acordo político teria sido amplamente negociado entre as partes legítimas para fazê-lo: militares e civis. Reconheceu os militares golpistas como sujeitos legítimos para celebrar “acordo” com a sociedade civil reprimida. Tratou-os como se o ambiente político e jurídico da época fosse idêntico ao de um Estado de Direito. Legitimou-se a ditadura militar.
7. Declarou que a “anistia bilateral” da EC/26 é o sustentáculo histórico e constitutivo da Constituição democrática. Inesperadamente, concebeu a democracia brasileira como possível e originária não de um poder constituinte soberano, mas da impunidade e da injustiça. A tortura e a negação da justiça para parcela da sociedade tornaram-se os fundamentos de nossa ordem democrática.

8. Formalizou uma regra de ouro para o autoritarismo: “Ditadores do futuro, não se esqueçam: antes de abandonarem seus regimes despóticos, aprovem uma lei de auto-anistia e tudo estará bem”. Preocupou-se em afirmar a ditadura ao invés da democracia.

No julgamento da lei de anistia brasileira, o direito não teve uma força civilizatória suficiente para promover o que há de melhor na política: a garantia das liberdades democráticas públicas, contra todas as formas de autoritarismos, seja de esquerda ou de direita, para o presente e para o futuro. O STF tomou uma decisão política. Desde então, não se pode mais dizer que se vive sob uma impunidade histórica imposta pelos ditadores militares. O cenário se alterou. Na Lei de anistia, parte dos ministros do Supremo, em plena democracia, agregou a suas assinaturas logo abaixo a assinatura dos generais ditadores. É a suprema impunidade.

* Paulo Abrão é doutor em Direito, advogado, professor universitário e presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

sábado, 8 de maio de 2010

Tortura, por que não?

Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo

O motoboy Eduardo Pinheiro dos Santos nasceu um ano depois da promulgação da lei da Anistia no Brasil, de 1979. Aos 30 anos, talvez sem conhecer o fato de que aqui, a redemocratização custou à sociedade o preço do perdão aos agentes do Estado que torturaram, assassinaram e fizeram desaparecer os corpos de opositores da ditadura, Pinheiro foi espancado seguidas vezes, até a morte, por um grupo de 12 policiais militares com os quais teve o azar de se desentender a respeito do singelo furto de uma bicicleta. Treze dias depois do crime, a mãe do rapaz recebeu um pedido de desculpas assinado pelo comandante-geral da PM. Disse então aos jornais que perdoa os assassinos de seu filho. Perdoa antes do julgamento. Perdoa porque tem bom coração. O assassinato de Pinheiro é mais uma prova trágica de que os crimes silenciados ao longo da história de um país tendem a se repetir. Em infeliz conluio com a passividade, perdão, bondade, geral.

Encararemos os fatos: a sociedade brasileira não está nem aí para a tortura cometida no País, tanto faz se no passado ou no presente. Pouca gente se manifestou a favor da iniciativa das famílias Teles e Merlino, que tentam condenar o coronel Ustra, reconhecido torturador de seus familiares e de outros opositores do regime militar. Em 2008, quando o ministro da Justiça Tarso Genro e o secretário de Direitos Humanos Paulo Vannuchi propuseram que se reabrisse no Brasil o debate a respeito da (não) punição aos agentes da repressão que torturaram prisioneiros durante a ditadura, as cartas de leitores nos principais jornais do País foram, na maioria, assustadoras: os que queriam apurar os crimes foram acusados de ressentidos, vingativos, passadistas. A culpa pela ferocidade da repressão recaiu sobre as vítimas. A retórica autoritária ressurgiu com a força do retorno do recalcado: quem não deve não teme; quem tomou, mereceu, etc. A depender de alguns compatriotas, estaria instaurada a punição preventiva no País. Julgamento sumário e pena de morte para quem, no futuro, faria do Brasil um país comunista. Faltou completar a apologia dos crimes de Estado dizendo que os torturadores eram bravos agentes da Lei em defesa da - democracia. Replico os argumentos de civis, leitores de jornais. A reação militar, é claro, foi ainda pior. "Que medo vocês (eles) têm de nós."

No dia em que escrevo, o ministro Eros Graus votou contra a proposta da OAB, de revisão da Lei da Anistia no que toca à impunidade dos torturadores. Para o relator do STF, a lei não deve ser revista. Os torturadores não serão julgados. O argumento de que a nossa anistia foi "bilateral" omite a grotesca desproporção entre as forças que lutavam contra a ditadura (inclusive os que escolheram a via da luta armada) e o aparato repressivo dos governos militares. Os prisioneiros torturados não foram mortos em combate. O ministro, assim como a Advocacia Geral da União e os principais candidatos à Presidência da República sabem que a tortura é crime contra a humanidade, não anistiável pela nossa lei de 1979. Mas somos um povo tão bom. Não levamos as coisas a ferro e fogo como nossos vizinhos argentinos, chilenos, uruguaios. Fomos o único país, entre as ferozes ditaduras latino-americanas dos anos 60 e 70, que não julgou seus generais nem seus torturadores. Aqui morrem todos de pijamas em apartamentos de frente para o mar, com a consciência do dever cumprido. A pesquisadora norte-americana Kathrin Sikking revelou que no Brasil, à diferença de outros países da América latina, a polícia mata mais hoje, em plena democracia, do que no período militar. Mata porque pode matar. Mata porque nós continuamos a dizer tudo bem.

Pouca gente se dá conta de que a tortura consentida, por baixo do pano, durante a ditadura militar é a mesma a que assistimos hoje, passivos e horrorizados. Doença grave, doença crônica contra a qual a democracia só conseguiu imunizar os filhos da classe média e alta, nunca os filhos dos pobres. Um traço muito persistente de nossa cultura, dizem os conformados. Preço a pagar pelas vantagens da cordialidade brasileira. "Sabe, no fundo eu sou um sentimental (...). Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar/ Meu coração fecha os olhos e sinceramente, chora." (Chico Buarque e Ruy Guerra).

Pouca gente parece perceber que a violência policial prosseguiu e cresceu no País porque nós consentimos - desde que só vitime os sem-cidadania, digo: os pobres. O Brasil é passadista, sim. Não por culpa dos poucos que ainda lutam para terminar de vez com as mazelas herdadas de 21 anos de ditadura militar. É passadista porque teme romper com seu passado. A complacência e o descaso com a política nos impedem de seguir frente. Em frente. Livres das irregularidades, dos abusos e da conivência silenciosa com a parcela ilegal e criminosa que ainda toleramos, dentro do nosso Estado frouxamente democratizado.





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domingo, 2 de maio de 2010

Julgamento foi uma decepção, diz comissão de anistia

VANNILDO MENDES - Agência Estado


O presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, disse ter ficado decepcionado com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de amparar sob a Lei de Anistia os torturadores que atuaram a serviço da ditadura militar. Para Abrão, a anistia foi editada para beneficiar as vítimas do regime, não os agentes da repressão que cometeram crimes contra a humanidade. Apesar disso, ele afirmou que a decisão terá de ser acatada por todos. "Embora discorde, temos que respeitar."
Contrariado, ele considerou decisão de certo modo esperada em razão das manifestações de vários ministros. Mas achou espantoso o voto do relator da ação, ministro Eros Grau, que a seu ver legitima a impunidade no País. "Pelo que ele afirmou, a negação da proteção às vítimas da ditadura e a impunidade dos torturadores constituem a norma fundante da democracia brasileira", criticou. "É o mesmo que dizer que a democracia se funda sob as bases da injustiça e da impunidade."
Porém, Abrão acredita que a decisão do STF não terá reflexos negativos sobre a Comissão da Verdade, criada pelo governo para apurar os crimes cometidos durante o regime militar e levantar dados que possam levar à localização e identificação de corpos de desaparecidos políticos.
A seu ver, alguns militares que temiam processo agora talvez se sintam estimulados a colaborar com a comissão, uma vez que não serão alcançados pela Justiça. "Mas nem com isso dá para contar, porque os militares brasileiros vivem em permanente estado de negação, mesmo os que não tiveram envolvimento com as condutas arbitrárias do passado", lamentou.
Para o dirigente, a decisão do Supremo contraria as convenções de direitos humanos e tratados internacionais firmados pelo Brasil sob a chancela da Organização das Nações Unidas (ONU). Ele lembrou que os demais países da América Latina que sofreram com ditaduras, como Argentina, Uruguai e Paraguai, estão enfrentando seu passado com mais firmeza e senso de justiça. "Estamos na contramão do mundo em matéria de direitos humanos."

Não se anistia o nazismo, nem a tortura

O Supremo Tribunal Federal terá nesta quarta-feira a oportunidade de reconciliar o país com sua história, de ajustar a memória à verdade, lavando uma ferida que ainda sangra e machuca. O STF julgará, enfim, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n o153, proposta em outubro de 2008 pelo Conselho Federal da OAB.

O que pede a OAB é simples: que o STF interprete o Artigo 1oda Lei da Anistia declarando, de forma clara e definitiva, que a anistia não se aplica aos crimes de tortura praticados por agentes da repressão durante o regime militar de 1964. Tortura e desaparecimento forçado são crimes de lesahumanidade, imprescritíveis. Não podem ser objeto de anistia ou autoanistia.
Lei nenhuma, no Brasil ou no mundo, acolhe ou reconhece a tortura.
O Brasil é o único país da América Latina que ainda não julgou criminalmente quem torturou e matou. Ao longo de 21 anos de regime autoritário, vicejou aqui um sistema repressivo estimado em 24 mil agentes que, devido a razões políticas, prendeu cerca de 50 mil brasileiros e torturou algo em torno de 20 mil pessoas — uma média de três torturas a cada dia de ditadura.
“Anistia não é amnésia”, lembrou o ex-presidente da OAB Cezar Britto.
Tortura não é crime político. É pior: é um grave atentado à dignidade humana — ontem, hoje e sempre. Torturadores que atentaram contra a vida e a dignidade não são esquecidos em todos os lugares, em todos os tempos. É por isso que, até hoje, criminosos de guerra nazistas, apesar de seus 80 ou 90 anos, ainda são caçados.
Não é pelo prazer da caça, mas pelo dever moral que a civilização tem de lembrar a todos que seus crimes não se apagam, não se perdoam.
No Tribunal de Nuremberg, que julgou os criminosos nazistas da II Guerra Mundial, a defesa dos principais chefes do III Reich alegou que eles apenas “cumpriam ordens”. O juiz americano Francis Biddle fulminou esta tese com uma frase imortal: “Os indivíduos têm deveres internacionais a cumprir, acima dos deveres nacionais que um Estado particular possa impor.” Ficou assim encravado na consciência moral do mundo que todos nós somos responsáveis pelos atos que praticamos. Ninguém é inocente para “cumprir ordens” contra a lei, a moral, a ética e a verdade.
Ninguém, neste país, tinha ordens para torturar. Nem mesmo o AI-5, a lei mais dura do período mais sangrento do regime de 64, mencionava ou liberava o uso da tortura. Os torturadores têm algo em comum: eles têm vergonha do que fizeram. É um crime, portanto, sem pai nem mãe.
Anistia não é esquecimento, é perdão.
Não se pode esquecer o que não se conhece. Também não se pode perdoar o que não foi punido — privilégio imaculado de todos os torturadores que ainda existem no país.
O nazismo não merecia a amnésia, muito menos a anistia. A tortura, também.
O historiador americano Edward Peters, da Universidade da Pensilvânia, escreveu: “O futuro da tortura está indissoluvelmente ligado ao futuro dos torturadores”. No berço da tortura não punida nasceu a impunidade da violência não resolvida do Brasil — antes na ditadura, agora na democracia.
A impunidade do torturador acaba garantindo a perenidade da tortura e de sua filha dileta, a violência.
O Brasil que evita punir ou sequer apontar os torturadores da ditadura acaba banalizando a violência que vitimiza o cidadão comum em plena democracia. Esta mesma impunidade que nasceu nos quartéis sobrevive hoje nas ruas.
A tortura é verdade. A verdade sob tortura é mentira. Esconder da história a verdade é a maior de todas as mentiras. Não podemos ser cúmplices.
O esquecimento da história é o berço da impunidade. E a impunidade é ancestral da violência. Punir os torturadores, de hoje e de ontem, não é revanchismo.
É uma obrigação moral e ética de um país que deve olhar sem medo para trás, para encarar sem receios o caminho que tem pela frente.
Vamos lavar e cicatrizar nossas feridas, acatando o pedido da OAB e os clamores de um país consciente de seu passado e confiante em seu futuro.
PEDRO SIMON é senador (PMDB-RS)