terça-feira, 5 de maio de 2009

Criticas de um anarquista à democracia


Hobbes e Locke, apesar de não defenderem, na filosofia política, pontos de vista semelhantes, estão de acordo a respeito de um ponto: não é possível vivermos sem um Estado. Ambos procuram mostrar, embora evocando razões diferentes, que a autoridade do Estado não só é legítima como a sua inexistência tornaria insuportável a vida em sociedade.
Muitos dos defensores do anarquismo discordam da perspectiva desses filósofos. Consideram absurdo colocar o problema da justificação do estado: não faz sentido procurar argumentos racionais para fundamentar a necessidade do estado porque este, simplesmente, não é necessário.
Como conceber então, partindo deste pressuposto, a organização da vida política e social?
O diálogo a seguir nos ajuda a ter uma idéia:

DEMOCRATA: Ouvi dizer que você se diz um verdadeiro defensor das idéias democráticas. Todavia, critica democratas que, como eu, afirmam que a democracia deve ser a forma de governar o estado.
ANARQUISTA: Claro. Não é possível transformar um mau Estado num bom Estado só por torná-lo democrático, do mesmo modo que não podes transformar um peixe podre num peixe fresco temperando-o com um molho especial.
DEMOCRATA: Caro amigo, deixe-me lhe dizer que a tua metáfora cheira mal. Parece pensar que um Estado é inevitavelmente mau; contudo, não poderíamos viver uma vida decente sem um Estado.
ANARQUISTA: Acho que quando você ouvir o meu argumento, irá aprovar a minha metáfora, pois se você concorda com minhas premissas, como parece, não vejo como poderá discordar da minha conclusão.
DEMOCRATA: Vamos ver.
ANARQUISTA: A minha primeira premissa é que ninguém é obrigado a apoiar ou a obedecer a um mau estado. O que torna esta afirmação poderosa é que ela não é apenas defendida pelos anarquistas, mas faz parte do conjunto de crenças do mundo ocidental de hoje. Como certamente concordará, apesar de a defesa desta afirmação ter uma longa e complexa história no pensamento ocidental, ela ganhou nos tempos modernos uma aceitação geral.
DEMOCRATA: Eu não discordo disso.
ANARQUISTA: Exatamente! A força do nosso argumento é que se fundamenta em premissas que a maioria de nós aceita. Neste século, o terror, a brutalidade e a opressão sistemáticos dos regimes totalitários transformaram esta proposta polêmica numa afirmação quase incontestada. Democratas, liberais, conservadores, radicais, revolucionários, cristãos, judeus, muçulmanos, ateus e agnósticos, todos concordam conosco quando dizemos que nenhuma pessoa tem a obrigação de apoiar ou obedecer a um estado opressivo.
DEMOCRATA: Mas a questão é que um estado democrático não é um estado opressivo.
ANARQUISTA: Não tire conclusões sem antes escutar o que tenho ainda para dizer. A minha segunda premissa é que todos os estados são opressivos. Aqui também nós, anarquistas, adotamos uma crença largamente partilhada. Hoje em dia a opressão é geralmente entendida como uma característica essencial da própria definição de estado. Entre as características específicas que distinguem um estado de outras associações está a sua capacidade de impor sanções severas e até violentas sobre as pessoas que violam as suas regras ou leis.
DEMOCRATA: Eu dificilmente contestaria uma idéia tão elementar. Como qualquer estado, um estado democrático usará a opressão para fazer cumprir as leis democraticamente estabelecidas, se isso se revelar necessário.
ANARQUISTA: Estou contente por, até agora, estarmos de acordo. Estou certo que também concordarás com a minha próxima premissa que é a seguinte: a coerção é intrinsecamente má. Mais uma vez, nós anarquistas, defendemos uma afirmação que poucas pessoas poderão contestar. A coerção significa forçar alguém a obedecer a algo, ameaçando física ou emocionalmente aqueles que se recusam obedecer. Na medida em que a coerção é bem sucedida as pessoas são obrigadas a obedecer às leis a que se opõem. Se a ameaça não dá resultados e a pessoa que desobedece é punida, o resultado é em geral o sofrimento físico na forma de prisão ou pior. Defender que consequências como estas são boas em si, ou mesmo neutras, seria perverso. Se pudéssemos atingir os nossos fins sem o uso da coerção e da punição, certamente que todos nós dispensaríamos esses meios.
DEMOCRATA: Não vou discutir a tua terceira premissa. Pelo contrário, nós democratas argumentamos que uma razão pela qual um estado deve ser democrata é precisamente porque um estado não é simplesmente uma associação voluntária. É porque possui a capacidade de coagir que um estado é potencialmente perigoso. Para garantir que o enorme poder de coagir de um estado seja usado para o bem público e não para o mal, é muito mais importante que o estado seja democrático do que qualquer outra associação privada o seja.
ANARQUISTA: Enquanto as minhas primeiras três afirmações podem ser facilmente aceites, a quarta já não o é: uma sociedade sem um estado é uma alternativa viável a uma sociedade com um estado.
DEMOCRATA: Todavia, essa afirmação é absolutamente essencial para os anarquistas. Sem ela o anarquismo seria apenas a apresentação de um problema filosófico para o qual não teria nenhuma solução.
ANARQUISTA: Claro. É a partir dela que vou defender a visão anarquista da sociedade na qual indivíduos autônomos em conjunto com associações voluntárias conseguem executam todas as atividades necessárias à realização de uma vida boa. Nós somos contra todas as formas de hierarquia e de coerção, não apenas no estado, mas em qualquer tipo de associação.
DEMOCRATA: Apresenta então o resto do teu argumento.
ANARQUISTA: Vou apresentar o meu argumento de uma forma esquemática.
Todos os estados são necessariamente coercivos e, por isso, são necessariamente maus;
Todos os estados são necessariamente maus e, por isso, ninguém tem obrigação de obedecer ou apoiar um qualquer estado;
Porque todos os estados são necessariamente maus, porque ninguém tem obrigação de obedecer ou apoiar qualquer estado, e porque uma sociedade sem um estado é uma sociedade viável, todos os estados deveriam ser abolidos.
Segue-se daqui que mesmo um processo democrático não pode ser justificado se apenas apresenta procedimentos (como a regra da maioria) para fazer aquilo que é inerentemente mau fazer, isto é: permitir que algumas pessoas coajam as outras. Um estado democrático continua a ser um estado, continua a ser coercivo e continua a ser mau.

(Trecho retirado de Democracy and its Critics, de Robert A. Dahl (Yale University Press, 1991, pp. 39-42).Excerto retirado de Democracy and its Critics, de Robert A. Dahl (Yale University Press, 1991, pp. 39-42).

1. Um anarquista considera que a legitimação da democracia, através do voto, é fictícia. Você consegue descobrir e explicar o porquê.
2. Como poderá um democrata refutar o argumento apresentado pelo anarquista?
3. Será possível colocar em prática as idéias defendidas pelos anarquistas e construir uma sociedade alternativa àquela que existe nos regimes democráticos?

(questões e introdução emprestadas de http://duvida-metodica.blogspot.com/)

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