quarta-feira, 27 de maio de 2009

Ditadura na internet



Abaixo, o manifesto que anda circulando nesta série de protestos:
A Internet é uma rede de comunicação aberta e livre. Nela, podemos criar conteúdos, formatos e tecnologias sem a necessidade da autorização de nenhum governo ou corporação. Através dela foi democratizado o acesso à informação, que e tem assegurado práticas colaborativas extremamente importantes para a diversidade cultural, constituindo-se, assim, a maior expressão da era da informação. Devido ao seu caráter interativo, ela assume um papel de destaque como espaço democrático, fomentador do envolvimento social e humano, ferramenta mediadora da criação coletiva, oportunizando diversas possibilidades de manifestação cultural nos âmbitos locais e planetários.
A Internet reduz as barreiras de entrada para o trânsito de informações, para a disseminação de conhecimentos, e isto incomoda grandes grupos econômicos e de intermediários da cultura. Por isso, eles se unem, para retirar da Internet, as possibilidades de livre criação e de compartilhamento de bens culturais de conhecimento.
Um projeto de lei do governo conservador do presidente francês Nicolas Sarkozi, foi aprovada pelo Senado Francês, que agora passa pelo Conselho Constitucional e a esta lei irá bloquear as redes P2P na França e tornar suspeitos (as) de prática criminosa todos (as) os (as) seus (suas) usuários (as).
No Brasil, um projeto substitutivo sobre crimes na Internet, defendido pelo senador Eduardo Azeredo (PSDB/MG), e já aprovado pelo Senado, será votado na Câmara de Deputados. Seu objetivo é “criminalizar” práticas cotidianas na Internet, tornar suspeitas as redes P2P, impedir a existência de redes abertas e reforçar o DRM (DRM = Gestão de direitos digitais que consiste em impor mecanismo fisicamente nos equipamentos, para restringir cópias de conteúdos digitais como o objetivo de assegurar e administrar os direitos autorais e marcas registradas), o que impedirá o livre uso de aparelhos digitais. Entre outros absurdos, o projeto também quer transformar os provedores de acesso em uma espécie de polícia privada, colocando em risco a privacidade dos (as) internautas e, se aprovado, elevando o já alto custo da comunicação no Brasil.
Além disso, os projetos de inclusão sociais, sejam Telecentros, Casas Brasil, Pontos de Cultura e Cidades Digitais, que proporcionam Internet livre para a população, serão prejudicados, reduzindo, desse modo, sua capacidade de expansão.
Para as propostas serem coletivas é preciso criar espaços públicos para a elaboração de sugestões que assegurem os direitos civis na internet. Ainda é necessário que Comitê Gestor da Internet no Brasil – CgiBr em conjunto com a sociedade, elabore propostas para serem debatidas nas conferências municipais e estaduais de comunicação.

Propriedade intelectual existe?


por José Antonio Meira da Rocha
Royalties (copyright e patentes) são monopólios temporários garantidos pelo Estado, uma “colher de chá” para editores e criadores, depois da invenção da imprensa. Trata-se de uma concessão assim como as linhas de ônibus. Não são “propriedade”. É impossível alguém ser proprietário de informação. Com os anos, grande editoras e grandes conglomerados de mídia foram patrocinando políticos que progressivamente aumentaram os anos de “colher de chá”.
Os dez anos que Cervantes ganhou em 1604 para explorar Don Quixote se consolidaram em 17 anos da primeira lei de copyright da rainha Anne, em 1710 (por isso, royalty). O prazo foi ampliado para 70 anos após a morte do autor. Agora, há movimentos dos tubarões para tornar esse monopólio de cópias permanente e perpétuo.
Mas os royalties funcionavam quando a cópia era em papel impresso. Com a tecnologia digital, é impossível segurar a reprodução de informação. Além, é claro, de ser enorme egoísmo, pois qualquer coisa que um ser humano crie é constituído de informações que outros criaram. Ombros de gigantes, aquela história (Newton dizia que só "descobriu" a lei da inércia porque estava sentado sobre ombros de gigantes: Galileu e Descartes, que o precederam) .
E, ao contrário do que os detentores do monopólio de cópia gostam de dizer, copiar não é “roubo” porque não tira de ninguém a propriedade do bem. Copiar burlando o monopólio pode ser contra a lei, mas é resistência pacífica e desobediência civil. É o mesmo que Gandhi fez quando disse que os indianos deviam fabricar o próprio tecido e produzir o próprio sal, coisas proibidas pelas leis coloniais inglesas.
Há um velho provérbio chinês que espelha bem a economia da informação na era digital:
“Quando dois homens vêm com um pão por uma estrada, se encontram e trocam de pães, cada um sai com um pão. Mas quando dois homens vêm com uma idéia, e trocam de idéias, cada um sai com duas idéias”.
http://baixacultura.org/2009/03/19/o-lobby-antipirataria-e-sua-origem/

Dionysus Sarcophagus

Ficheiro:Dionysus Sarcophagus.jpg - Wikipédia, a enciclopédia livre

terça-feira, 26 de maio de 2009

Carta sobre a felicidade a Meneceu


Epicuro envia suas saudações a Meneceu
"Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz. Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la. Pratica e cultiva então aqueles ensinamentos que sempre te
transmiti, na certeza de que eles constituem os elementos fundamentais para
uma vida feliz.
Em primeiro lugar, considerando a divindade como um ente imortal e bem-aventurado, como sugere a percepção comum de divindade, não atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem inadequado à sua bem-aventurança; pensa a respeito dela tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade. Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles faz a maioria das pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses, ímpio não é quem rejeita
os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas próprias virtudes, eles só aceitam a convivência com os seus semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente deles.
Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efémera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade.
Não existe nada de terrível na vida para cjuem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no
entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida. O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é um mal. Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve.
Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de agradável para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em honestamente viver e em honestamente morrer. Mas pior ainda é aquele que diz: bom seria não ter nascido, mas, uma vez nascido, transpor o mais depressa possível as portas
do Hades. Se ele diz isso com plena convicção, por que não se vai desta vida? Pois é livre
para fazê-lo, se for esse realmente seu desejo; mas se o disse por brincadeira, foi um frívolo em falar de coisas que brincadeira não admitem. Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não-nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais. Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo. Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda a tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo, não tendo que ir em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir. É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida
feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor. Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles
nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem
como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem. Consideramos ainda a auto-suficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos contentarmos com esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil de
conseguir; difícil é tudo o que é inútil. Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta: pão e água
produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita. Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portanto, não só é conveniente para a saúde, como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida: nos períodos em que conseguimos levar uma existência rica, predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar sem temor as vicissitudes da sorte.
Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos
peixes ou das outras iguarias de urna mesa farta que tomam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência,beleza e justiça, e que não existe prudência, beleza e justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas. Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem
um juízo reverente acerca dos deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco, ou só nos causa sofrimentos leves? Que nega o destino, apresentado por alguns como o senhor de tudo, já
que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso, instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanhara a censura e o louvor? Mais vale aceitar o mito dos deuses, do que ser escravo do desino dos naturalistas: o mito pelo menos nos oferece a esperança do perdão dos deuses
através das homenagens que lhes prestamos, ao passo que o destino é uma necessidade inexorável. Entendendo que a sorte não é uma divindade, como a maioria das pessoas acredita (pois um deus não faz nada ao acaso), nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam fundamentais para uma vida feliz, mas, sim, que dela pode surgir o início de grandes bens e de grandes males. A seu ver, é preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom projeto não
chegue a bom termo, do que chegue a ter êxito um projeto mau. Medita, pois, todas estas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente a um mortal o homem que vive entre bens imortais.



Tradução baseada na edição de Arrighetti. Epicuro. Opere. Torino, 1973.
©2007 CEFA e Portal Brasileiro da Filosofia

O que é o existencialismo?


O que é o existencialismo?
Consideremos um objeto fabricado, como por exemplo um livro ou um corta-papel: tal objeto foi fabricado por um artífice que se inspirou de um conceito; ele reportou-se ao conceito do corta-papel, e igualmente a uma técnica prévia de produção que faz parte do conceito, e que é no fundo uma receita. Assim, o corta-papel é ao mesmo tempo um objeto que se produz de certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida, e não é possível imaginar um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que há de servir tal objeto. Diremos pois que, para o corta-papel, a essência - quer dizer, o conjunto de receitas e de características que permitem produzi-lo e defini-lo - precede a existência: e assim a presença, frente a mim, de tal corta-papel ou de tal livro está bem determinada. Temos, pois, uma visão técnica do mundo, na qual se pode dizer que a produção precede a existência. Quando concebemos um Deus criador, esse Deus identificamo-lo quase sempre como um artífice superior; e qualquer que seja a doutrina que consideremos,(...) admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos a inteligência ou pelo menos a acompanha, e que Deus, quando cria, sabe perfeitamente o que cria. Assim o conceito do homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de um corta-papel no espírito do artífice; e Deus produz o homem segundo técnicas e uma concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Assim o homem individual concretiza certo conceito que está na inteligência divina.No século XVIII, para o ateísmo dos filósofos, suprime-se a noção de Deus mas não a idéia de que a essência precede a existência. Tal idéia encontramo-la nós um pouco em todo o lado: encontramo-la em Diderot, em Voltaire e até mesmo num Kant. O homem possui uma natureza humana; esta natureza, que é o conceito humano, encontra-se em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo particular de um conceito universal - o homem; para Kant resulta de tal universalidade que o homem da selva, o homem primitivo, como o burguês, estão adstritos à mesma definição e possuem as mesmas qualidades de base. Assim pois, ainda aí, a essência do homem precede essa existência histórica que encontramos na natureza. O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou (...) a realidade humana. Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para concebê-la.O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que se chama a subjetividade, e o que nos censuram sob este mesmo nome. Mas que queremos dizer nós com isso, senão que o homem tem uma dignidade maior do que uma pedra ou uma mesa? Porque o que nós queremos dizer é que o homem primeiro existe, ou seja, que o homem antes de tudo é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no futuro. O homem é um projeto que se vive subjetivamente, em vez de ser um creme, qualquer coisa podre ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada há no céu inteligível, e o homem será antes de mais o que tiver projetado ser. Não o que ele quiser ser. Porque o que entendemos vulgarmente por querer, é uma decisão consciente, e que, para a maior parte de nós, é posterior àquilo que ele próprio se fez. Posso querer aderir a um partido, escrever um livro, casar-me; tudo isso não é mais do que a manifestação duma escolha mais original, mais espontânea [e menos consciente] do que o que a "vontade". Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo o homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. E, quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens. [...] Quando dizemos que o homem se escolhe a si, queremos dizer que cada um de nós se escolhe a si próprio; mas com isso queremos também dizer que, ao escolher-se a si próprio, ele escolhe todos os homens. Com efeito, não há dos nossos atos um sequer que ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser. Escolher ser isto ou aquilo, é afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, porque nunca podemos escolher o mal, o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos. Se a existência, por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo que construímos a nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve toda a humanidade. O que é inevitavelmente angustiante. [...]Antes de mais, que é que se entende por angústia? O existencialista não tem vergonha em declarar que o homem é angústia. Significa isso: o homem ligado por um compromisso e que se dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade. Decerto, há muita gente que não vive em ansiedade; mas é nossa convicção que esses tais disfarçam a sua angústia, que a evitam certamente muitas pessoas acreditam que ao agirem só se implicam nisso a si próprias, e quando se lhes diz: e se toda a gente fizesse assim? Elas dão de ombros e respondem: nem toda a gente faz assim. Ora a verdade é que devemos perguntar-nos sempre: que aconteceria, se toda a gente fizesse o mesmo?, e não podemos fugir a esse pensamento inquietante a não ser por uma espécie de má-fé. É a esta angústia que Kierkegaard chamava a angústia de Abraão. Todos conheceis a história: um anjo ordenou a Abraão que sacrificasse o filho. Está tudo certo, se foi realmente um anjo que apareceu e disse: tu és Abraão, tu sacrificarás o teu filho. Mas cada qual pode perguntar-se, antes de mais, trata-se realmente de um anjo, e sou eu realmente Abraão? Quem é que afinal mo prova? Havia uma doida que tinha alucinações: falavam-lhe ao telefone e davam-lhe ordens. O médico perguntou-lhe: “Mas quem é que lhe fala?” A doida respondeu: “Diz ele que é Deus.” E que é que lhe provava, afinal, que era Deus? Se um anjo vem até mim, que é que me garante que é um anjo? E se ouço vozes que é que me garante que elas vêm do céu e não do inferno, ou dum subconsciente, ou dum estado patológico? Quem pode demonstrar que elas se dirigem a mim? Quem pode provar que sou eu o indicado para impor a minha concepção de homem e a minha escolha à humanidade? Não acharei nunca prova alguma, algum sinal que me convença. Se uma voz se dirige a mim, serei eu sempre a decidir se esta voz é a de um anjo; se admito que tal ato é bom, a mim compete a escolha de dizer que este ato é bom e não mau. Tudo se passa como se, para todo o homem, toda a humanidade tivesse os olhos postos no que ele faz. E cada homem deve dirigir-se a si próprio: terei eu seguramente o direito de agir de tal modo que a humanidade se regule pelos meus atos? E se o homem não diz isso, é porque ele disfarça a sua angústia.[...]E quando falamos de desamparo (...) queremos dizer somente que Deus não existe e que é preciso tirar disso as mais extremas consequências. O existencialista opõe-se muito a um certo tipo de moral laica que gostaria de suprimir Deus com o menor dispêndio possível. Quando em torno de 1880 alguns professores franceses tentaram construir uma moral laica, disseram mais ou menos isto: Deus é uma hipótese inútil e dispendiosa, vamos portanto suprimi-la, mas torna-se necessário, para que haja uma moral, uma sociedade, um mundo policiado, que certos valores sejam levados a sério e considerados como existindo a priori: é preciso que seja obrigado, a priori, ser honesto, não mentir, não bater na mulher, ter filhos, etc., etc... Vamos pois aplicar-nos a uma pequena tarefa que permita mostrar que estes valores existem, apesar de tudo, inscritos num céu inteligível, embora, no fim de contas, Deus não exista. Por outras palavras, e é essa, creio eu, a tendência de tudo o que se chama em França o radicalismo - nada será alterado, ainda que Deus não exista; reencontraremos as mesmas normas de honestidade, de progresso, de humanismo e, quanto a Deus, teremos feito dele uma hipótese caduca que morrerá em sossego e por si própria. O existencialista, pelo contrário, pensa que é muito incômodo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível; não pode existir já o bem a priori, visto não haver já uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir, já que precisamente estamos agora num plano em que há somente homens. Dostoiewsky escreveu: «Se Deus não existisse, tudo seria permitido». Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. [...]Jean- Paul Sartre, O existencialismo é um humanismo,

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Televisão: um perigo para as massas

texto retirado de http://filosofialogos.blogspot.com

Imagem criada por Chris Weston para ilustrar o romance de George Orwell, "1984", onde se colocou pela primeira vez em ficção a ideia de uma câmera "Big brother" que vigiava todos os movimentos dos cidadãos.

"Por ocasião de uma conferência que dei há alguns anos na Alemanha tive o ensejo de conhecer o responsável de uma cadeia (de TV) que se deslocara para me ouvir juntamente com alguns colaboradores. (...) Durante a nossa discussão fez afirmações inauditas, que se lhe afiguravam naturalmente indiscutíveis. «Devemos oferecer às pessoas o que elas esperam», afirmava, por exemplo, como se fosse possível saber o que as pessoas pretendem recorrendo simplesmente aos índices de audiência. Tudo o que é possível recolher, eventualmente, são indicações sobre as preferências dos telespectadores face aos programas que lhes são oferecidos. Esses números não nos dizem o que devemos ou podemos propor, e esse director de cadeia também não podia saber que escolhas fariam os telespectadores perante outras propostas. De facto, ele estava convencido de que a escolha só seria possível no quadro do que era oferecido e não perspectivava qualquer alternativa. Tivemos uma discussão realmente incrível. A sua posição afigurava-se-lhe conforme aos «princípios da democracia» e pensava dever seguir a única direcção compreensível para ele, a que considerava «a mais popular». Ora, em democracia nada justifica a tese deste director de cadeia (de TV), para quem o facto de apresentar programas cada vez mais medíocres corresponde aos princípios da democracia «porque é o que as pessoas esperam». Nessas circunstâncias, só nos resta ir para o inferno!"A democracia, como expliquei algures, não é mais do que um sistema de protecção contra a ditadura, e nada no seio da democracia proíbe as pessoas mais instruídas de comunicarem o seu saber às que o são menos. Pelo contrário, a democracia sempre procurou elevar o nível de educação; é essa a sua autêntica aspiração. As ideias deste director de cadeia (de TV) não correspondem em nada ao espírito democrático, que sempre foi o de oferecer a todos as melhores oportunidades. Inversamente, os seus princípios conduzem a propor aos telespectadores emissões cada vez piores, que o público aceita desde que se lhes acrescente violência, sexo e sensacionalismo".
Karl Popper e John Condry, Televisão: Um perigo para a democracia, 1999, Gradiva, Lx

terça-feira, 19 de maio de 2009

Nasce o malandro na Literatura Brasileira

Para os alunos interessados no artigo que apresenta a personagem de Leonardo, das Memórias de um Sargento de Milícias, como o primeiro malandro das letras tupiniquins, lá vai o link da dialética da malandragem: ideiadeculturabrasileira.blogspot.com/2007/06/dialtica-da-malandragem.html

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Sobre a Eutanásia

Há um site português dedicado ao ensino de filosofia que introduz ao assunto de forma acessível e moderada: http://www.filedu.com/hkuhseeutanasia.html. Ou ainda em: http://www.ifl.pt/main/Portals/0/dic/eutanasia.pdf

O transporte público e o movimento passe livre

Os textos a seguir se encontram no Jornal Passe, No 1, publicado pelo movimento passe livre:

Carta aberta à população, aos movimentos sociais e ao poder público da cidade de São
Paulo:
Atualmente inúmeras notícias nos alertam sobre os sucessivos recordes de congestionamentos na cidade de São Paulo, gerando uma grande discussão na mídia sobre as condições de circulação e transporte da metrópole. A questão do número excessivo de automóveis e da ineficácia dos transportes coletivos urbanos está novamente em evidência. O grande número de notícias veiculado faz com que esse tema se torne freqüente nas declarações dos candidatos à
prefeitura. Cada um deles, como sempre, apresenta uma pequena gama de análises e propostas para a resolução da “crise” deste setor. Propostas que mais parecem jargões obrigatórios contra o trânsito demasiado e suas já sabidas conseqüências: engarrafamentos que geram prejuízos por conta da circulação ineficiente de mercadorias, stress nas pessoas envolvidas diretamente com as filas e os ônibus e metrôs lotados e a emissão de gases poluidores afetando o meio ambiente.
Nós, do Movimento Passe Livre, consideramos que há uma lacuna fundamental nos debates travados até aqui por grande parte dos políticos e da mídia: ignorar os interesses, as necessidades e os direitos da ampla maioria da população que precisa do transporte coletivo para realizar as tarefas cotidianas de trabalho, estudo e lazer. O transporte é fundamental para toda a estrutura da cidade, para a organização da vida urbana e do espaço urbano. Acreditamos que a
garantia do acesso e da mobilidade da população pela metrópole não pode ficar restrita apenas àqueles que compram seus carros ou que podem pagar pelas altas tarifas dos transportes coletivos urbanos. Além disso, afirmamos que os investimentos em metrô e novos corredores
para ônibus são medidas importantes. Mas, por si só, não bastam – já que não mudam a lógica atual pela qual o transporte é organizado. Defendemos que apenas a mudança total e radical da lógica de circulação na cidade, com garantias plenas à Mobilidade Urbana diária de todas as pessoas, é que será capaz de questionar e reverter o atual modelo de transportes – para que este não seja pautado pelos interesses exclusivos da circulação de mão-de-obra/ força-de-trabalho ou pelos lucros dos empresários de transporte coletivo. Apresentamos a seguir as nossas reivindicações e propostas, pelas quais lutaremos.
1. Transporte coletivo gratuito
O transporte coletivo é um direito elementar, que entre outras coisas deveria garantir o acesso aos demais direitos elementares, como a saúde e a educação. Deveria, mas infelizmente não garante, porque, da forma como é apresentado à sociedade, o transporte coletivo é uma mercadoria, um grande negócio que tem servido para enriquecer grupos empresariais e reproduzir seus interesses políticos no nível da municipalidade.
Entre 1997 e 2002 aumentou de forma notável, entre aqueles que têm renda de até dois salários mínimos, o número de pessoas que se deslocam a pé (de 57% para 62%). O percentual de pessoas que utilizam ônibus e metrô, na mesma faixa de renda, caiu fortemente nesse período. Está claro para nós que os transportes coletivos urbanos são um serviço público essencial, e que nessa condição devem caminhar rumo à gratuidade total e universal, subsidiada
pelo poder público. A fim de que isso seja possível, lutamos para que, em vez de os usuários e as usuárias de ônibus pagarem tarifas, as parcelas mais ricas da cidade devem arcar com o custo do transporte, através de impostos progressivos, já que possuem mais recursos que o restante da população.
2. Municipalização dos transportes Nossa proposta é que o poder público assuma para si, retirando do âmbito privado das empresas de ônibus, o planejamento e a execução da gestão dos
transportes coletivos. A regulação hoje exercida pela SPTRA NS é insuficiente: os empresários de ônibus continuam garantindo apenas seu próprio bemestar pressionando a empresa pública, que não é capaz de uma resposta em defesa dos interesses da população. A retirada completa de ônibus e lotações das ruas no meio do dia, em meio aos turbulentos acontecimentos de 2006
atribuídos ao PC , deixou grande parte da população por conta própria, pois os empresários não quiseram colocar seu patrimônio em risco. Somente uma gestão pública dos transportes, com a efetiva participação da população que está diretamente ligada ao transporte (usuários e trabalhadores) garantirá um transporte público voltado aos interesses coletivos.
3. Combate à cultura do automóvel Observamos que a procura permanente pelas saídas individuais, sintetizada na lógica do carro e da moto, é inviável do ponto de vista social, ambiental e espacial. Vemos que a cidade atualmente é completamente hegemonizada pelos automóveis particulares – para os quais todo o espaço de circulação é dirigido: eles têm prioridade em relação aos pedestres, ciclistas e transportes coletivos. As vias e pontes ocupam boa parte da extensão da cidade. Além disso, grandes porções do centro de São Paulo são tomadas exclusivamente por estacionamentos particulares. O poder público privilegia o transporte
individual, quando concentra grandes investimentos em vias, pontes, túneis – representando um gasto pesado no orçamento municipal que somente beneficia os usuários de automóveis particulares. Assim, em vez de o poder público investir na melhoria das condições do transporte coletivo, suas ações estão prioritariamente endereçadas no sentido de promover e reforçar a
cultura do automóvel. Pensamos que, com todos os seus defeitos e suas tentativas de iludir o povo organizado, o período eleitoral pode ser utilizado para que a população leve
seriamente este debate às suas últimas conseqüências. Para se organizar e conquistar esse direito negado. E fazer com que os futuros administradores da cidade saibam do que ela, a população, precisa e é capaz de lutar para obter. No entanto, o debate continua sendo travado num horizonte curto. As necessidades da população seguem ocultadas nesse processo. O ponto de partida, que é a liberdade e o direito de ir e vir para todos os cidadãos, não
é levado em consideração a fundo. E o sistema de transporte continua sendo pensado a partir da lógica do equilíbrio financeiro, ou seja, do lucro. Alertamos, por fim, que a construção deste projeto apenas no campo da política institucional é insuficiente. Por esse motivo, os movimentos sociais e a população organizada devem criar seus próprios projetos e intervir na cidade
em que vivemos. No entanto, mais do que isso, acreditamos que somente com a articulação entre os diversos movimentos sociais urbanos e rurais, na luta conjunta e no apoio mútuo, é que conseguiremos obter o que reivindicamos: Transporte, Moradia, Renda, Educação, Cultura, Reforma Agrária e Urbana.

Movimento Passe Livre São Paulo, setembro de 2008
mpl-sp@riseup.net

Muito além do cidadão Kane

Eis a primeira parte do documentário da BBC sobre as tramóias da rede globo. Ele está dividido em quatro partes, para assistir as seguintes, basta escolhê-las entre as sugestões oferecidas ao fim desta :
http://www.youtube.com/watch?v=JA9bPyd1RKQ&feature=related

Direitos do Telespectador, por Eugênio Bucci

fonte: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=2498
O artigo que apresento aqui foi publicado pela primeira vez na revista on-line Observatório de Imprensa, em sua edição de 20 de janeiro de 1997, sob o título de “Em busca dos direitos do telespectador”. Mas, não sendo original, este artigo também não é igual àquele outro. Incorporei aqui sugestões de leitores que me escreveram depois da primeira publicação e, principalmente, as contribuições de integrantes do grupo Tever, criado pela deputada Marta Suplicy em 1997. Reunindo intelectuais, jornalistas, psicanalistas, professores, educadores, advogados, promotores, gente disposta a conversar um pouco mais seriamente sobre a televisão brasileira e suas conseqüências, o grupo se dedicou, num dos encontros, a debater especificamente as propostas aqui listadas. Quer dizer: o que começou como provocação numa revista on-line, vai ganhando corpo como “obra coletiva”. Assim é que tem de ser.
Existem no Brasil cerca de 40 milhões de lares com TV. Uma das redes privadas brasileiras, a Globo, é freqüentemente citada como uma das cinco maiores do mundo. O número de televisores vendidos por ano no Brasil (8,54 milhões em 1996) só perde para os Estados Unidos e para o Japão. O Brasil se comunica pela televisão. O Brasil se conhece e se reconhece pela televisão, e praticamente só pela televisão, que reina absoluta sobre o público nacional, com um peso muitas vezes superior aos outros veículos. Basta comparar. Raramente um jornal ultrapassa a casa de 1 milhão de exemplares. Só a semanal Veja consegue isso, com uma circulação paga de 1,2 milhão. Comparativamente, lê-se pouco, muito pouco no Brasil. São vendidos aqui cerca de dois exemplares de revista por habitante a cada ano, o que deixa o país bem atrás da Argentina, que chega a cinco, dos Estados Unidos, que bate nos trinta, e de alguns países europeus, como a França, que vão a 47. Acontece, então, que a TV monologa dentro das casas brasileiras. Não há um outro veículo que a conteste, ou sequer que a relativize para o público mais amplo. Ela dá a primeira e a última palavra e, mais que isso, a primeira e a última imagem sobre todos os assuntos.Nesse monólogo audiovisual, o telespectador é o último a ser consultado e o primeiro a ser ofendido, desrespeitado, ultrajado. Foi daí que me ocorreu essa história de “direitos do telespectador”. Uso o termo entre aspas porque não é propriamente o conceito jurídico de que trato, embora essa noção possa gerar ações no campo judicial. E, de fato, admito, a expressão “direitos do telespectador” pode parecer estranha. Talvez soe como um arremedo de Código de Consumidor, e não é nada disso o que se pretende. O conceito que me interessa é muito mais político, algo como uma consciência atuante, contagiante e crescente. O objetivo é difundir e promover o exercício de uma nova consciência, segundo a qual o telespectador, em sua integridade e em sua diversidade, é um pólo ativo a ser levado em conta quando se pensa a programação e o comportamento das emissoras.Portanto, quando falo em direitos do telespectador estou falando, para começar, em deixar de pensá-lo e de tratá-lo como se ele fosse um receptor passivo. Estou falando em pensá-lo como um cidadão, extraindo daí as conseqüências que trarão impactos na tela da TV. Não é difícil ver que, na prática, o telespectador é ignorado nesse sentido. Claro que ele entra nas pesquisas de audiência, ou em consultas mercadológicas de todo tipo (até de marketing político), mas ele não é levado em conta como cidadão, como aquele cidadão, aliás, em nome do qual o poder público outorga as concessões de canais.O desprezo pelos direitos do telespectador permanece mesmo com a modernização tecnológica da televisão. Os entusiastas da TV interativa anunciam uma democracia digital estupenda e revolucionária para amanhã ou depois de amanhã: com centenas de canais a seu dispor, o poder de escolha do telespectador terá muito mais peso que atualmente, alegam. Será possível programar o filme que você quer para a hora que você desejar, comemoram. Outros já vêem nas pesquisas que são feitas pelos 0900 da vida um início de interatividade promissor e há os que exultam com programas do tipo Você Decide, com dois ou três finais alternativos que podem ser eleitos pela audiência. Há vinte anos, talvez mais, futurólogos de diversos matizes pensam nos prodígios tecnológicos arejando os processos decisórios na sociedade e isso estaria acontecendo agora com ajuda da televisão. E não será surpresa se a TV Senado, acessível para os 2 milhões de aparelhos conectados aos canais por assinatura, começar a fazer em breve consultas nesse gênero para os eleitores ligados aos debates ao vivo.Nada disso, entretanto, caracteriza o atendimento dos direitos do telespectador. Como eu já disse, são consultas meramente mercadológicas: ouve-se o público sobre suas preferências de consumo, de comportamento, de opinião, com o objetivo de aperfeiçoar mercadorias a ele destinadas, mas o poder não está em jogo em nada disso. E quando falo em direitos do telespectador estou falando daquilo que dá a ele a condição de fazer parte do poder, de fato. Ou, sob um outro ângulo, de limitar o poder concentrado nas grandes redes. Logo veremos.Antes, porém, vale deixar claro: nem mesmo como um consumidor de programas de TV o telespectador é respeitado. Ele nunca é ouvido, não é consultado, não tem a quem se queixar, e se encontra à mercê do que as emissoras resolvem pôr no ar. O telespectador tem menos direitos que os leitores de jornais e revistas, menos direitos que os ouvintes de rádio, e muito menos direitos que os usuários da Internet. Daí que, o simples exercício de procurar imaginar quais seriam os direitos do telespectador pode ajudar a enxergar essa condição de passividade injusta à qual ele ficou condenado. É também uma maneira de perguntar se isso não poderia ser diferente.Tento aqui enumerar quais seriam alguns desses direitos. Não são coisas inventadas, mas idéias simples, elementares, nada mais que decorrências dos direitos consagrados da cidadania. Listando-os, espero abrir campo para que se pensem formas criativas de permitir a entrada do telespectador no poder que envolve a televisão.Antes de ir aos direitos, de uma vez, ainda falta fazer um alerta. Nenhum dos pontos a seguir deve ser entendido como posição fechada. Ao contrário, são todos pensados como propostas para um debate mais amplo.Todo telespectador tem o direito de:
1) Ser informado de modo independente, recebendo os dados necessários para que forme sua própria opinião.Numa das reuniões do grupo Tever, ano passado, a psicanalista Maria Rita Kehl deu um providencial esclarecimento para os que pensam que não existe censura no Brasil. Ela lembrou que a censura existe sim, só não é feita pelo Estado, e sim pelas emissoras e por seus donos, que sonegam determinados assuntos ao público. Ou seja, de um certo modo, vivemos sob a privatização também da censura. O que é um escândalo em se tratando de televisão. Não se discute aqui o direito - e mesmo o dever - que cabe a todo editor de selecionar, hierarquizar e, enfim, de editar as informações que divulga. O problema está no modo como isso acontece na televisão que, aliás, é uma concessão pública. Quando sonega informações, ou quando as emite de modo deliberadamente tendencioso, um canal de TV está violando um direito essencial do telespectador. Não se trata de policiar subtextos, mensagens subliminares e outros efeitos de mensuração controvertida. Trata-se de vigiar os abusos escancarados. Concessão pública, o canal de TV deve estar proibido de sonegar fatos de relevância pública evidente. Da mesma forma, deve estar proibido de empregar sua influência junto ao público com finalidades partidárias.
2) Estar protegido do sensacionalismo que potencializa a violência e a criminalidade.Ter pleno conhecimento dos direitos e ter acesso aos mecanismos que os fazem valer são atributos básicos da cidadania. Alguém já disse, por sinal, que cidadania nada mais é que “o direito a ter direitos”. Para se ter direitos é preciso conhecê-los e é preciso conhecer também o modo de garanti-los. É nisso que reside o grande atentado à cidadania que representam esses programas apelativos de um certo jornalismo policial. O sensacionalismo em torno da criminalidade desinforma o telespectador sobre a organização dos direitos e ilude o desinformado com soluções que conduzem à barbárie. Confunde inquérito com julgamento, faz apologia (dissimulada ou escancarada) da pena de morte como se ela prescindisse de julgamento justo, como se ela fosse uma execução sumária (“solução relâmpago”), ofende a dignidade daqueles que são presos como suspeitos e se vêem submetidos a interrogatórios diante das câmeras, transforma policiais em atores de cenas de perseguição como nos filmes de ação, desviando-os das suas funções primordiais. É bom que se registre, de passagem, que mais de uma vez o secretário de Segurança Pública de São Paulo deu ordens expressas proibindo esse tipo de “atuação”. Nota-se que não tem sido obedecido.O sensacionalismo agrava a paranóia no público, obscurece a razão e contribui para desesclarecer o telespectador, além de estimular bandos de extermínio, justiceiros e outras deformações.Há também a humilhação sistemática dos humildes, presos como suspeitos, que são convertidos em atrações mórbidas para assegurar a audiência. Por que os ricos nunca aparecem como suspeitos nesse tipo de circo? Por isso, suspeitos de crimes devem ser protegidos da exposição pública, devem ter assegurado o seu direito de não dar “entrevistas” aos programas sensacionalistas. Eles não são obrigados a isso. Ao contrário, têm direito de se preservar, e o delegado deveria ser o responsável por protegê-lo das câmeras. Não se pense que isso restringe o direito de informar e de ser informado: a exploração da imagem de suspeitos, de sua dor e de sua vergonha, em nada contribui para o conteúdo da notícia que eventualmente exista no fato. Presta-se apenas ao sensacionalismo.Por fim, não descarto a hipótese de que, nesse campo, o Ministério Público possa encontrar maneiras de pleitear que tudo o que fosse considerado desinformativo em matéria de direitos fosse retificado no dia seguinte. Houve apologia da pena de morte como se ela fosse uma execução sumária, houve incentivo a linchamentos? No dia seguinte, o mesmo apresentador, no mesmo programa, estaria obrigado a desmentir. Mais ou menos como acontece durante a campanha eleitoral, mas com uma distinção. Durante as campanhas políticas, o que motiva as retificações diárias é o direito de resposta do ofendido. Aqui, porém, não há um ofendido em particular, o que foi ofendido foi o direito de todos. O mecanismo, então, seria outro. Algo próximo da ação civil pública, cuja finalidade é a proteção do direito difuso. O acesso a informações sobre os próprios direitos seria o bem tutelado. Então, teríamos retificações persistentes, desmentindo o que o programa afirmou e dando em seguida a informação correta. Mas, como eu disse, trata-se de uma hipótese, de uma possibilidade que, se tiver chances de viabilidade legal, precisa de uma discussão mais ampla.
3) Ser respeitado em sua condição religiosa, sexual, étnica, ideológica ou de nacionalidade.A manifestação de preconceitos pela TV ofende a integridade de alguns em particular e a dignidade de todos, no plano geral. (É preciso deixar bem claro: a manifestação de toda forma de discriminação preconceituosa contribui para degradar o todo, acima dos indivíduos.) E a nossa televisão tem muito disso: o telespectador liga o aparelho, acomoda-se no sofá, e começa a ser agredido sem mais nem menos. Sua cor de pele é xingada, sua opção sexual é aviltada, sua religião, ridicularizada. Por isso, é preciso proclamar, por mais óbvio que pareça: o telespectador tem o direito de não ser ofendido quando liga a televisão. E tem o direito de exigir isso.
4) Escolher o que entra ou não entra na TV de sua própria casa.Aqui entro num território especialmente polêmico. O professor Renato Janine Ribeiro, também participante das conversas do grupo Tever, alerta para um problema nada desprezível que vem junto com essa idéia do V-chip, o aparelhinho que filtra eletronicamente, na casa de cada um, os programas de TV. Antes de explicar o problema corretamente apontado por Janine Ribeiro, tento resumir como é que funciona esse V-chip. Resumir pelo menos o seu conceito. Como você sabe, as atrações saem da emissora e vão para os lares brasileiros graças aos sinais eletrônicos, por ondas eletromagnéticas, por satélites, ou mesmo pelos fios das tevês a cabo. Imagine então que cada um dos sinais de cada uma dessas atrações (cada telejornal, cada filme, cada show de auditório, tudo) carregue junto um selo eletrônico, com a informação sobre classificação de, digamos, faixa etária indicada para aquele programa em particular. Quando os sinais de um programa qualquer, um filme com muita cena de sexo e muito mais cena ainda de violência, chegassem até a casa do telespectador, encontrariam o V-chip já programado para não permitir que ele entrasse ali. Trata-se, resumidamente, claro, de um sistema de censura doméstica eletrônica.O problema levantado por Renato Janine reside na classificação. Inevitavelmente ela será feita por aí: número de nus frontais, ou número de pontapés. Com isso, estaremos igualando, por exemplo, Império dos Sentidos, uma reconhecida obra de arte, a Garganta Profunda, um clássico da pornografia. Ou teríamos dentro do mesmo selo Era uma Vez no Oeste e Duro de Matar III. Sem dúvida, um problemão. Há obras que nada têm de nudismo ou de pancadaria e que não merecem ser vistas por ninguém. Outras, extremadas, radicais, de um erotismo perverso, são indispensáveis. Esse tipo de classificação, enfim, não mede as coisas por qualidade, mas por uma quantificação não-inteligente e insensível. É um problema mas não há muita saída fora dele.Mas há algo no V-Chip que me faz ser favorável. Claro que qualquer censura é abjeta. Todos devem ter o direito de veicular tudo. Em contrapartida, o telespectador deve ter assegurado o seu direito de filtrar o que entra ou não entra em sua casa (direito que tem sido sistematicamente ignorado). Quem decide o que vai passar na televisão de cada casa não é a emissora, mas o dono da casa. A emissora deve ter o direito de veicular o que quiser, sem sofrer nenhuma forma de censura. Em contrapartida, o cidadão deve ter o direito de selecionar o que sua família deve ver.
5) Ter uma alternativa às redes nacionais obrigatórias.As transmissões oficiais, quando acontecem num horário único, retiram ao telespectador o seu direito à escolha. Que se garanta a veiculação das mensagens que os poderes da República julguem de interesse público, mas que encontrem fórmulas para se respeitar o direito de escolha do telespectador. Isso vale também para os horários gratuitos de propaganda eleitoral. Uma dessas fórmulas poderia ser a veiculação do programa em horários diferentes por emissora, ou o revezamento entre as emissoras que cubram uma mesma região.
6) Ter acesso a bancos de imagem com a memória da TV brasileira.Acesso à informação é um direito básico, todos sabemos. Tanto que a idéia de bibliotecas públicas já se encontra definitivamente incluída no senso comum. As bibliotecas devem ser públicas porque a democracia pressupõe que o acesso à informação também deve ser público. Mas hoje boa parte da informação já não se encontra nos livros: ela está nas imagens eletrônicas da televisão. É preciso que busquemos um modo de construir bancos de dados de imagens em vídeo. É bom que se diga que esses bancos já existem, às vezes mais precários, às vezes menos, mas são privados, quer dizer, fechados. Se alguém quer rever aquilo que o Jornal Nacional mostrou ontem, terá alguma dificuldade. Se precisar recuperar o que ele noticiou há um ano, terá ainda mais problemas. E alguém que queira recompor a história da televisão, que se confunde com a história do Brasil, simplesmente descobrirá que isso é impossível. Já foi. Desmanchou-se no ar. Pensar portanto um modo de arquivar a televisão e tornar esse arquivo parte do patrimônio público é uma tarefa urgente, embora cara, e uma tarefa que corresponde a um direito do telespectador.
7) Telefonar, mandar faxes, cartas ou e-mails para as emissoras - e para os anunciantes - e ser bem atendido e obter respostas satisfatórias.Nessa nossa época insuportavelmente interativa - incrível como se tem abusado dessa pobre palavra! -, em que todos os programas se dizem interativos, quando dezenas de sorteios e serviços telefônicos são anunciados diariamente na TV, convocando o público a participar, participar e participar, as emissoras continuam sem dar satisfação ao público sobre o que interessa. O telespectador deve ser ouvido não apenas quando é convidado, mas também quando pensa ter algo importante a dizer. É direito seu obter uma resposta esclarecedora e gentil. É direito seu que as emissoras mantenham um bom serviço de atendimento ao telespectador, gratuito, rápido e eficiente. Qualquer jornal impresso tem uma seção dedicada às cartas que são enviadas pelos leitores. O mesmo não ocorre com as emissoras de televisão. O ideal seria que as emissoras não apenas dessem visibilidade às opiniões dos telespectadores, mas que tivessem também um espaço semanal, conduzido por um ombudsman, independente, que respondesse e comentasse essas opiniões. O professor Laurindo Leal Filho, integrante do Tever, tem insistido bastante nessa idéia, a partir do que ele próprio verificou na televisão inglesa.Essa obrigação social, entretanto, não deve se restringir às emissoras. Ela também precisa ser partilhada pelos anunciantes. A televisão comercial tem perseguido unicamente os índices de audiência, pois presta contas unicamente aos anunciantes. Quando a emissora comete excessos, ofensas e desinformação, no entanto, ela própria sofre críticas (ainda que ineficazes) mas o anunciante tem escapado ileso. É como se ele não fosse cúmplice, ou, mais ainda, não fosse o patrocinador do programa que é veiculado. O anunciante não pode ser cobrado pelos detalhes do conteúdo, mas pode ser sim responsabilizado pela missão, pelo perfil e pelos valores do programa a que dá suporte. Se ele associa sua imagem à imagem do programa, deve responder por isso. Assim, na condição de anunciante, deveria estar obrigado a prestar contas ao público. Anunciar em televisão não deveria ser visto apenas como um instrumento comercial, mas como uma interferência no espaço público que acarreta responsabilidades sociais.
8) Defender-se.Não existe, atualmente, um Instituto de Defesa do Telespectador. Precisa ser inventado. Seria uma entidade da sociedade civil, mas com apoio do poder público, e teria a missão de difundir os direitos do telespectador, de estimular a visão crítica, de orientar discussões nas escolas, principalmente com as crianças (que passam pelo menos três horas diante da TV, e nunca elaboram o que vêem, nunca têm a chance de conversar ordenadamente sobre isso), e de dar seguimento às queixas dos telespectadores. Para isso, precisaria estar juridicamente equipada e politicamente enraizada, sendo capaz de contatar rapidamente as próprias emissoras, de acionar as autoridades e de mover ações na justiça.
9) Criar grupos ou associações (permanentes ou transitórias) para protestar e se fazer ouvir.Muito do que se fala aqui pode e deve ser garantido pelos próprios telespectadores. A sociedade é capaz de criar organismos que dêem visibilidade aos direitos dos telespectadores. Mais importante do que controlar o que vai dentro da TV é despertar e estimular a capacidade crítica dos telespectadores, principalmente do público infantil, para conviver de forma menos passiva com a televisão. Nesse sentido, a constituição desses grupos, de modo bastante destacado nas escolas, desempenharia um papel relevante.
10) Assinar e controlar um termo de compromisso com os que exploram as concessões.Bem, aqui chegamos a um direito, por assim dizer, simbólico. Mas deveríamos pensar num compromisso, um contrato ético que fosse assinado e lido em voz alta, diante de representantes do Congresso nacional, por todos os que ganhassem concessões de rádio e televisão. Esse quase juramento teria o efeito de subordinar a emissora ao poder que representa a vontade popular, estabelecendo formalmente um diálogo que passaria por cima da mediação dos burocratas. Caso desobedecesse os termos desse contrato, estaria esse empresário sujeito às penalidades previstas. E se submeteria ao vexame público, por ter fugido ao compromisso ético que firmou com o povo brasileiro.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Criticas de um anarquista à democracia


Hobbes e Locke, apesar de não defenderem, na filosofia política, pontos de vista semelhantes, estão de acordo a respeito de um ponto: não é possível vivermos sem um Estado. Ambos procuram mostrar, embora evocando razões diferentes, que a autoridade do Estado não só é legítima como a sua inexistência tornaria insuportável a vida em sociedade.
Muitos dos defensores do anarquismo discordam da perspectiva desses filósofos. Consideram absurdo colocar o problema da justificação do estado: não faz sentido procurar argumentos racionais para fundamentar a necessidade do estado porque este, simplesmente, não é necessário.
Como conceber então, partindo deste pressuposto, a organização da vida política e social?
O diálogo a seguir nos ajuda a ter uma idéia:

DEMOCRATA: Ouvi dizer que você se diz um verdadeiro defensor das idéias democráticas. Todavia, critica democratas que, como eu, afirmam que a democracia deve ser a forma de governar o estado.
ANARQUISTA: Claro. Não é possível transformar um mau Estado num bom Estado só por torná-lo democrático, do mesmo modo que não podes transformar um peixe podre num peixe fresco temperando-o com um molho especial.
DEMOCRATA: Caro amigo, deixe-me lhe dizer que a tua metáfora cheira mal. Parece pensar que um Estado é inevitavelmente mau; contudo, não poderíamos viver uma vida decente sem um Estado.
ANARQUISTA: Acho que quando você ouvir o meu argumento, irá aprovar a minha metáfora, pois se você concorda com minhas premissas, como parece, não vejo como poderá discordar da minha conclusão.
DEMOCRATA: Vamos ver.
ANARQUISTA: A minha primeira premissa é que ninguém é obrigado a apoiar ou a obedecer a um mau estado. O que torna esta afirmação poderosa é que ela não é apenas defendida pelos anarquistas, mas faz parte do conjunto de crenças do mundo ocidental de hoje. Como certamente concordará, apesar de a defesa desta afirmação ter uma longa e complexa história no pensamento ocidental, ela ganhou nos tempos modernos uma aceitação geral.
DEMOCRATA: Eu não discordo disso.
ANARQUISTA: Exatamente! A força do nosso argumento é que se fundamenta em premissas que a maioria de nós aceita. Neste século, o terror, a brutalidade e a opressão sistemáticos dos regimes totalitários transformaram esta proposta polêmica numa afirmação quase incontestada. Democratas, liberais, conservadores, radicais, revolucionários, cristãos, judeus, muçulmanos, ateus e agnósticos, todos concordam conosco quando dizemos que nenhuma pessoa tem a obrigação de apoiar ou obedecer a um estado opressivo.
DEMOCRATA: Mas a questão é que um estado democrático não é um estado opressivo.
ANARQUISTA: Não tire conclusões sem antes escutar o que tenho ainda para dizer. A minha segunda premissa é que todos os estados são opressivos. Aqui também nós, anarquistas, adotamos uma crença largamente partilhada. Hoje em dia a opressão é geralmente entendida como uma característica essencial da própria definição de estado. Entre as características específicas que distinguem um estado de outras associações está a sua capacidade de impor sanções severas e até violentas sobre as pessoas que violam as suas regras ou leis.
DEMOCRATA: Eu dificilmente contestaria uma idéia tão elementar. Como qualquer estado, um estado democrático usará a opressão para fazer cumprir as leis democraticamente estabelecidas, se isso se revelar necessário.
ANARQUISTA: Estou contente por, até agora, estarmos de acordo. Estou certo que também concordarás com a minha próxima premissa que é a seguinte: a coerção é intrinsecamente má. Mais uma vez, nós anarquistas, defendemos uma afirmação que poucas pessoas poderão contestar. A coerção significa forçar alguém a obedecer a algo, ameaçando física ou emocionalmente aqueles que se recusam obedecer. Na medida em que a coerção é bem sucedida as pessoas são obrigadas a obedecer às leis a que se opõem. Se a ameaça não dá resultados e a pessoa que desobedece é punida, o resultado é em geral o sofrimento físico na forma de prisão ou pior. Defender que consequências como estas são boas em si, ou mesmo neutras, seria perverso. Se pudéssemos atingir os nossos fins sem o uso da coerção e da punição, certamente que todos nós dispensaríamos esses meios.
DEMOCRATA: Não vou discutir a tua terceira premissa. Pelo contrário, nós democratas argumentamos que uma razão pela qual um estado deve ser democrata é precisamente porque um estado não é simplesmente uma associação voluntária. É porque possui a capacidade de coagir que um estado é potencialmente perigoso. Para garantir que o enorme poder de coagir de um estado seja usado para o bem público e não para o mal, é muito mais importante que o estado seja democrático do que qualquer outra associação privada o seja.
ANARQUISTA: Enquanto as minhas primeiras três afirmações podem ser facilmente aceites, a quarta já não o é: uma sociedade sem um estado é uma alternativa viável a uma sociedade com um estado.
DEMOCRATA: Todavia, essa afirmação é absolutamente essencial para os anarquistas. Sem ela o anarquismo seria apenas a apresentação de um problema filosófico para o qual não teria nenhuma solução.
ANARQUISTA: Claro. É a partir dela que vou defender a visão anarquista da sociedade na qual indivíduos autônomos em conjunto com associações voluntárias conseguem executam todas as atividades necessárias à realização de uma vida boa. Nós somos contra todas as formas de hierarquia e de coerção, não apenas no estado, mas em qualquer tipo de associação.
DEMOCRATA: Apresenta então o resto do teu argumento.
ANARQUISTA: Vou apresentar o meu argumento de uma forma esquemática.
Todos os estados são necessariamente coercivos e, por isso, são necessariamente maus;
Todos os estados são necessariamente maus e, por isso, ninguém tem obrigação de obedecer ou apoiar um qualquer estado;
Porque todos os estados são necessariamente maus, porque ninguém tem obrigação de obedecer ou apoiar qualquer estado, e porque uma sociedade sem um estado é uma sociedade viável, todos os estados deveriam ser abolidos.
Segue-se daqui que mesmo um processo democrático não pode ser justificado se apenas apresenta procedimentos (como a regra da maioria) para fazer aquilo que é inerentemente mau fazer, isto é: permitir que algumas pessoas coajam as outras. Um estado democrático continua a ser um estado, continua a ser coercivo e continua a ser mau.

(Trecho retirado de Democracy and its Critics, de Robert A. Dahl (Yale University Press, 1991, pp. 39-42).Excerto retirado de Democracy and its Critics, de Robert A. Dahl (Yale University Press, 1991, pp. 39-42).

1. Um anarquista considera que a legitimação da democracia, através do voto, é fictícia. Você consegue descobrir e explicar o porquê.
2. Como poderá um democrata refutar o argumento apresentado pelo anarquista?
3. Será possível colocar em prática as idéias defendidas pelos anarquistas e construir uma sociedade alternativa àquela que existe nos regimes democráticos?

(questões e introdução emprestadas de http://duvida-metodica.blogspot.com/)