sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A loucura segundo Erasmo


Por dentro do Elogio da loucura

Erasmo, com seu Elogio da loucura, livro que é um misto de sermão ácido, sátira honesta e brincadeira com compromisso ético, estabelece um marco para o homem moderno. A ironia do seu elogio aparece já nas primeiras páginas: "Já que a raça humana insiste em ser completamente louca - já que todas as pessoas, do Papa ao mais humilde padre de aldeia - do mais rico dos homens ao mais miserável dos mendigos - da honrada dama em suas sedas e cetins à mulher vulgar em seu vestido de chita - já que todos se decidiram firmemente a não usar o cérebro que Deus lhes deu, mas insistem em se deixar guiar inteiramente pela ambição, vaidade, ignorância, por que motivo, em nome de uma divindade racional, deveriam as poucas pessoas realmente inteligentes perder seu tempo e esforço, tentando mudar o gênero humano, transformando-o em algo que ele jamais desejou ser? Deixemo-lo viver feliz em suas loucuras. Não o privemos daquilo que, lhe dá maior prazer - seu infinito poder de se tornar ridículo." No Elogio da Loucura, Erasmo argumenta que são os desejos tolos e irracionais que fazem girar o mundo. O livro é um discurso da boca da própria Loucura que se dirige a uma platéia imaginária composta de homens de todas as classes e condições. Usando uma beca de doutor, mas com um barrete de bobo na cabeça, a Loucura sobe ao palco, seguida por seus ajudantes: o Amor-Próprio, o Esquecimento, a Preguiça, o Prazer, a Sensualidade, o Sono Profundo, a Intemperança e a Demência. A Loucura nos conta que é filha de Plutão (ou Hades, deus do submundo) e de uma encantadora criatura chamada Juventude, e que foi criada por duas ninfas sedutoras: Embriaguez, filha de Baco (ou Dioniso, deus do vinho e da música), e Ignorância, filha de Pã (ou do Fauno, deus dos bosques e rebanhos). Na violenta sátira que se segue, Erasmo, falando através da loucura, ridiculariza praticamente todas as instituições, costumes, homens e crenças de seu tempo, inclusive o casamento, a guerra, o nacionalismo, os advogados, cientistas, acadêmicos, teólogos, soberanos e papas. A Loucura afirma que, sem sua ajuda, a sociedade não sobreviveria. Nenhum homem ou mulher de bom senso se arriscaria a casar e a ter filhos, a não ser inspirados pela Loucura e a ela, portanto, deviam a vida, "os arrogantes filósofos e os reis em sua púrpura, os padres piedosos e os papas triplamente santos." "Que fase da vida não é triste, desagradável, desairosa, monótona e penosa", pergunta a Loucura, "a menos que seja acrescido o prazer, isto é, um tempero de loucura?" Enquanto os homens mais sábios, de mais sensatez são considerados desgraçados, os tolos e os idiotas são mais felizes, sem as tormentas e medo dos males, sem as angústias de milhares de preocupações às quais nos submete a vida". Até mesmo as mais altamente respeitadas profissões muito devem à Loucura, pois a medicina é sobretudo, charlatanice, e a maioria dos advogados é de trapaceiros. E mais:quanto maior a habilidade dos governos em ludibriar o povo, mais bem sucedidos eles serão.
Alguns dos ataques mais contundentes de Erasmo dirigem-se a supostos sábios empenhados em explicar aquilo que está além do alcance da razão humana: "Como deliram deslumbrados, como se fossem os enviados especiais da natureza criadora ou tivessem descido até nós do Conselho dos Deuses! Enquanto isso a Natureza, magnificamente, ri-se deles e de suas conjecturas!" Erasmo apresenta cada busca da humanidade como sendo apoiada pela Loucura. No teatro: "Destrua-se a ilusão e qualquer peça perde o sentido". Os caçadores "sentem inefável prazer íntimo quando escutam o rouco toque das trombetas e o ladrar dos cães... e haverá algo mais encantador do que um animal sendo esquartejado?" Igualmente iludidos estão aqueles que se lisonjeiam além da conta com os desprezíveis títulos de nobreza. Um, encontrará as raízes de sua família em Enéias, outro em Brutus, e um terceiro até no Rei Artur. Em cada sala exibem retratos e bustos de seus antepassados". Da mesma forma, o comerciante, labutando por dinheiro, o poeta buscando imortalidade, o guerreiro sonhando grandeza, os jogadores, cujos "corações pulam e começam a bater rapidamente" ao ouvir o chocalhar dos dados - estes e muitos outros têm suas vidas governadas pela Loucura. Grande parte do Elogio da Loucura é dedicada ao discurso da Loucura sobre a igreja e a doutrina Cristã. A irreverência com os nomes e textos bíblicos fizeram, na época, com que Erasmo fosse acusado de escarnecedor e ateu, apesar de ele nunca ter abandonado a fé católica. Nenhum membro da hierarquia da Igreja escapa ao tratamento satírico da pena de Erasmo, embora seu alvo especial fossem os monges: "Os monges não saber ler um sinal de santidade. Zurram os salmos nas igrejas como asnos. Não entendem uma só palavra do que dizem, mas imaginam ser o som agradável aos ouvidos dos santos. Os frades mendicantes fingem assemelhar-se aos Apóstolos, mas não passam de vagabundos imundos, ignorantes e ousados." Erasmo satiriza o esplendor e o mundanismo dos papas, cardeais e bispos, contrastando-os com a simplicidade do Pescador da Galiléia (Ver Mateus 4:18). Considera ridículas e absurdas as loucuras das superstições e da adoração dos santos. "Mas, que direi", pergunta Erasmo, "das pessoas que, com tanta felicidade, se enganam com os perdões forjados de seus pecados? Esses tolos se convencem de que podem comprar todas as bênçãos e prazeres desta vida, como também o céu, depois da morte, e, por puro amor ao lucro imundo, os padres encorajam-nos em seus erros". Nesta passagem Erasmo ataca a venda de indulgências (absolvição dos pecados mediante pagamentos), prática que só será abandonada pela Igreja católica após a crise da reforma protestante.

Grande foi a coragem de Erasmo para expor a corrupção da Igreja de seu tempo, a mais forte e poderosa organização da época. Apesar de sutis e indiretos, seus ataques eram extremamente eficientes. Segundo Stephan Zweig: "No Elogio da Loucura existia, debaixo de sua máscara carnavalesca, um dos livros mais perigosos de seu tempo, um daqueles que se nos apresentam como um inteligente fogo de artifício; e foi, na verdade, uma bomba cuja explosão abriu o caminho para a Reforma protestante e para a transformação da própria igreja católica”

Alguns trechos do Elogio:

"As pessoas admiram com prazer maior o que menos compreendem, pois a sua vaidade está nisso interessada. Assim riem, aplaudem, abanam as orelhas como burros, para mostrarem deste modo que compreenderam perfeitamente."
"Toda a gente vê no rei um homem opulento e poderoso. Porém, se não possuir nenhuma qualidade espiritual, nada lhe pertence, é mesmo infinitamente pobre, e, se está sujeito ao domínio dos vícios, é apenas o mais vil dos escravos. Se os atores estão em cena desempenhando o seu papel e um deles tenta arrancar as máscaras para mostrar ao público a sua verdadeira face, conseguirá apenas perturbar toda a representação e deveria ser expulso do teatro como louco. Pois a donzela da peça surgiria aos vossos olhos como um homem; o jovem transformar-se-ia num velho; o rei num escravo e o deus num miserável humano. Destruída toda a ilusão, a obra destrói-se. Era o figurino e o disfarce que atraíam o espectador. O mesmo acontece na vida, que não passa duma comédia, em que cada qual representa o seu papel, conforme a máscara que usa, até que o contra-regra o faz sair de cena. Este, de resto, confia ao mesmo ator papéis muito diversos, de modo que aquele que antes se revestia da púrpura de um rei reaparece agora sob os trapos de um escravo. Por todo o lado só existe o disfarce, e a comédia da vida representa-se do mesmo modo."
"Como são felizes os teólogos quando exercem sua atividade e quando descrevem com minúcia o inferno, como se aí tivessem passado anos."
"Haverá algum de vós tão louco que deixe na rua o ouro e as jóias? Ninguém, decerto. Encerrá-los-eis no canto mais secreto e retirado da casa e nos cofres mais bem fechados e guardados. O lixo, porém, é deitado para a via pública. Ora, se o que se tem de mais precioso é que se esconde e o que há de mais vil se expõe à luz do dia, a Sabedoria, que não se esconde, é mais vil do que a Loucura, que nos aconselham a esconder."
"Haverá pelos deuses imortais, espécie mais feliz que os homens a quem o vulgo chama loucos, parvos, imbecis, cognomes belíssimos, na minha opinião? Esta afirmação poderá a princípio parecer insensata e absurda e no entanto, nada há de mais verdadeiro. Tais homens não receiam a morte e, por Júpiter! isso já não representa pequena vantagem! A sua consciência não os incomoda. As história de fantasmas não os aterrorizam, nem os afeta o medo das aparições e espectros, nem os males que os ameaçam ou a esperança dos bens que poderão vir a receber. Nada, em resumo, os atormenta, isentos dos mil cuidados de que a vida é feita. Ignoram a vergonha, o medo, a ambição, a inveja e chegam mesmo, se são suficientemente estúpidos, a gozar o privilégio, segundo os teólogos, de não cometerem pecados."

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