segunda-feira, 4 de agosto de 2008




A razão crítica de Cervantes através da loucura de Dom Quixote
Frei Betto

“Dom Quixote”, o primeiro grande romance da literatura universal, está completando 400 anos. Dividido em duas partes, teve a primeira publicada em 1605, quando Cervantes andava pelos 57 anos. Obteve sucesso inesperado. Traduzida para o inglês em 1612, e para o francês em 1614, a obra atraía aos portos das Américas centenas de leitores ávidos por revistar as embarcações chegadas da Espanha à procura de um volume. Em 1615 Cervantes publicaria a segunda parte das aventuras do cavaleiro da Mancha. No ano seguinte, a 23 de abril, ele haveria de se encontrar com Shakespeare do outro lado da vida, pois os dois faleceram no mesmo dia.Toda obra de arte vale por sua beleza e não necessita de explicaçoes. Ela é polissêmica, isto é, possui múltiplos sentidos e cada pessoa a aprecia a partir de sua sensibilidade. Pois todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto. A sensibilidade, porém, não é uma qualidade que nasce conosco. Pode e deve ser apurada, acrisolada, refinada, de modo que se extraia da obra de arte o máximo proveito. O que para alguém são apenas dois pedaços de madeira cruzados ao acaso, para muitos é a cruz carregada de significado, símbolo de uma fé religiosa fecundada na história do Ocidente pelo sangue dos mártires.Sabemos também que todo texto é melhor compreendido quando situado dentro de seu contexto. O impacto que causa "Dom Quixote" provoca a curiosidade da razão, suscitando interrogações que nos impelem ao irresistível e difícil trabalho de escavar o texto, como quem contempla a imponência das pirâmides do Egito e se indaga como foi possível obra tão monumental quando ainda a roda não havia sido inventada. (...)O que sabemos, porque nos é dito pelo autor no próprio texto do romance, é que "Dom Quixote " é uma paródia dos livros de cavalaria. O autor pretendeu, segundo as suas próprias palavras, "destruir a autoridade descabida que exercem no mundo e entre o povo os livros de cavalaria." No último capítulo da obra, quando Dom Quixote já se encontra no leito de morte e recupera a lucidez, voltando a ser o bom Alonso Quijano, ele desabafa aos amigos que o cercam: "Tenho o juízo já livre e claro, sem as sombras nebulosas da ignorância com que o ofuscou a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros de cavalaria. Já conheço os seus disparates e imposturas e só me pesa ter chegado tão tarde este desengano, que não me desse tempo para me emendar, lendo outros que fossem luz da alma". E mais adiante: "Já sou inimigo de Amadis de Gaula e do infinito bando de sua linhagem; já me são odiosas todas as histórias profanas de cavalaria andante; já conheço minha sandice e o perigo em que me pôs o tê-las lido; já por misericórdia de Deus, e bem escarmentado, as abomino".Um romance não é obra apenas da razão. Resulta sobretudo do inconsciente, lá onde a intuição e a imaginação garimpam a matéria-prima que surpreende o próprio autor. Portanto, ao motivo explícito revelado por Cervantes ­ a crítica radical à literatura de cavalaria ­ há que se perguntar que outras motivações o impeliram a dedicar tantos anos a uma obra tão bem estruturada. Não importa que essas motivações não tenham sido apontadas pelo autor e, quem sabe, nem eram nele conscientes. Assim como o funcionamento de um relógio pode ser melhor compreendido ao desmontá-lo em suas diferentes peças, também o texto, como as pirâmides do Egito, contém galerias e redutos plenos de tesouros.A crítica socialA crítica social de "Dom Quixote " é melhor percebida ao recordar que o autor foi súdito da monarquia absolutista de Felipe II, apoiada pela Contra-reforma tridentina, e redigiu sua novela sob o reinado decadente de Felipe III. Felipe II arruinara a Espanha com a sua megalomania expansionista, investindo na dilatação de um império que abarcava desde as Filipinas ao norte da Europa, a África e o Novo Mundo latino-americano, até mesmo o Brasil, onde os portugueses foram os primeiros a aportar. As exorbitantes despesas militares, a obsessão por espalhar pelos mares sua Armada Invencível, os gastos com a exploração e a importação de ouro e prata das Américas, foram fatores que mergulharam o país de Cervantes na espiral inflacionária, agravando a crise social. A Mancha, terra de Dom Quixote, é o retrato da decadência do reino, onde o desemprego multiplicava pelos povoados e caminhos pícaros, mendigos, vadios, charlatães, bandidos, enfim, toda uma classe de marginalizados e excluídos cujos farrapos destoavam dos elmos dos oficiais do rei e dos heróis dos romances de cavalaria.Em 1898 a Espanha perdeu, com a independência de Cuba, suas últimas colônias. Então o " Quixote " passou a ser lido com novos olhos: Cervantes prefigurara ali a ruína da Espanha, desbancada de sua loucura imperialista ­ embora a herança conservadora da Contra-reforma tenha produzido, no século XX, a aterradora figura do generalíssimo Franco.Tornar-se hoje mais fácil reler o " Quixote " destacando sua aguda crítica social. Em 1605 já não havia castelos na Mancha. Havia casebres, albergues e bodegas, entre os quais trafegariam o cavaleiro da triste figura e Sancho Pança, seu fiel escudeiro, opondo-se a todas as instituições de poder: o Estado, a polícia, a Igreja e as atividades econômicas.Em 1925 Américo Castro publicou "El pensamiento de Cervantes", comprovando a influência de Erasmo de Rotterdã sobre Cervantes. López de Hoyos, professor do criador do Quixote, era erasmista convicto. Em um trecho do romance é citado o livro de devoção "Luz del alma", de frei Felipe de Meneses, também discípulo de Erasmo. Este erudito sacerdote flamengo dedicou-se a libertar a teologia do formalismo da escolástica decadente. Era um homem de mente aberta, tornara os textos bíblicos acessíveis aos leitores leigos, desmistificou o rigor acadêmico dos textos teológicos, tão misteriosos e herméticos aos olhos do vulgo frente aos dogmas que reforçavam.Nutrido pelas fontes do pensamento humanista, como Platão, Aristóteles e Horácio, Cervantes relativizou tudo aquilo que o poder, tanto político quanto eclesiástico, absolutizava. Iniciou sua narrativa por nos contar que Alonso Quijano enlouqueceu de tanto ler. E a partir daí construiu o contraponto entre ilusão e verdade, mesclando a realidade e o sonho, o cotidiano e o quimérico, o heróico e o cômico, sem ceder ao ceticismo dos escritores barrocos. "Dom Quixote" não é um romance picaresco, embora esteja repleto de pícaros. É uma sátira inconformista que arranca a máscara do império espanhol, mostrando que não há heróis nem cavaleiros, há sim maus escritores, soldados indisciplinados, inquisidores disfarçados, médicos incompetentes, bandidos, assaltantes, camponeses e pastores.Otto Maria Carpeaux observou que, influenciado pelo humanismo tolerante e crítico de Erasmo, Cervantes fez uma criação crítica e uma crítica criadora. Seu personagem defende as vítimas das injustiças praticadas pelos poderosos e nos alerta para a facilidade com que os nossos olhos míopes encaram a realidade: vemos gigantes maldosos onde há apenas moinhos de vento; exército de inimigos onde pasta um rebanho de ovelhas; um grande troféu numa simples bacia de barbeiro."Amadis de Gaula" e outros romances de cavalaria glorificavam a mentalidade feudal e a empresa colonizadora da Armada espanhola. Cervantes ergueu a sua pena contra todos aqueles que insistiam na loucura de pretender encobrir a verdade histórica com a ficção cosmética. Na folha de rosto da 1ª. ediçao há o desenho de um escudo e, nele, o lema: "Post tenebris, spero lucem"- depois das trevas, espero luz. A luz do antidogmatismo, que derruba as verdades absolutas e as certezas consideradas irremovíveis. A luz que nos permite ver que, de fato, tudo é ambíguo, contraditório, dialético. Até mesmo o próprio Cervantes, que no fim da vida escreveu ­ pasmem! ­ um romance de cavalaria, "Persiles y Segismunda".Bergamín (e não Chesterton, como muitos pensam), nos preveniu que "louco é aquele que perdeu tudo, menos a razao". E Michel Foucault frisa que Quixote é o louco senhor da razão, mas não com a sua loucura, e sim com o seu protesto. Hoje, o império são os EUA. E onde há apenas pequenas instalações industriais e bases petrolíferas ele enxerga armas de destruição em massa; onde há apenas famílias trabalhadoras, ele vê terroristas; onde há tão-somente homens e mulheres que praticam com devoção sua fé muçulmana, ele aponta fanáticos e fundamentalistas.Onde andarão os Cervantes capazes de derrotar com a sua pena aqueles que nos miram com as suas armas?-

Frei Betto é escritor, autor de “Treze Contos Diabólicos e um Angélico”, que a editora Planeta lançou em março.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi prof. Eu sou mais quixotesco que eu pensava.