domingo, 17 de agosto de 2008

Quando nascemos somos uma folha em branco - John Locke

O texto abaixo é uma adaptação do Ensaio sobre o entendimento humano, de John Locke:

É opinião incontestável para algumas pessoas que o homem, ao nascer, traz já em sua alma algumas idéias ou princípios inatos (que nascem conosco) ou noções comuns que ela carrega ao longo de sua vida.

Se meus leitores estivessem livres de preconceitos seria fácil para eu mostrar que os homens podem chegar a todos os seus conhecimentos sem recorrer a nenhuma noção inata, utilizando apenas as suas faculdades naturais. Posto que no meu entender seria impróprio supor inatas idéias das cores em uma criatura a quem Deus deu a vista e o poder de receber estas idéias através dos olhos a partir dos objetos externos. E não seria menos irracional atribuir a certos caracteres inatos o conhecimento que temos de muitas verdades, quando notamos que podemos explicá-las através de um processo natural de aprendizagem.

Não há opinião mais comumente aceita de que existem certos princípios com os quais todos os homens concordam e daí se deduz que estão desde sempre marcados em nossa alma. princípios nasceram conosco... Mas o pior é que este argumento do consenso universal sobre certos princípios me parece uma prova do fato contrário: de que não existe nenhum princípio inato, posto que não existe nenhum sobre o qual universalmente todos os homens estejam de acordo.

Alguém poderia argumentar contra nós: “quem discordaria do princípio de identidade (“tudo o que é, é”) ou do princípio da não contradição (“é impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo”)?” Mas eu afirmo que há quem desconheça tais noções: como o provam o exemplo das crianças e dos loucos. Afirmar que este possuem tais princípios sem saber é uma hipótese frágil desmentida pela prática de ambos.

No que diz respeito aos valores morais o desacordo de opiniões é ainda mais evidente. Desafio uma pessoa que conheça um pouco mais do que o seu próprio umbigo, isto é, que possua um conhecimento mínimo sobre a história dos povos para me indicar um único princípio moral que seja seguido igualmente por todos os povos (ainda que baste sair do nosso próprio bairro para notar o desacordo geral dos homens sobre a correta moral). Além disso seria absurdo e ridículo supor que um princípio moral não pode ser contestado, pois se não se pode contestá-lo, ou seja, exigir que ele apresente suas razões, isto é, se justifique, ele nem pode ser chamado moral. Isto porque só podemos chamar de moral um valor que o indivíduo escolhe livremente de forma justificada, porém, se um princípio nasce conosco não temos escolha, somos forçados pela nossa própria natureza a segui-lo, não temos escolha nem liberdade. Aliás, se algum princípio moral fosse natural, inato, simplesmente não teríamos como violá-lo, assim como não podemos contrariar a nossa fisiologia.

Só para dar alguns exemplos: Em alguns povos os filhos matam seu pai e sua mãe, sem nenhum remorso, quando eles chegam a uma idade determinada. Por acaso não existiram nações inteiras, inclusive as mais civilizadas, que julgaram permitido rejeitar seus filhos e deixá-los morrer de fome ou devorados por animais ferozes? Ainda hoje existem países em que os recém-nascidos são enterrados vivos junto com sua mãe quando esta morre no parto? Certos povos do Peru comiam os filhos que faziam com suas prisioneiras e faziam o mesmo com estas quando paravam de ter filhos. Entre os índios (“brasileiros”) Tupinambas só se concedia a honra de chegar ao paraíso àquelas pessoas que se vingassem dos seus inimigos e os devorassem em um banquete ritual. Qualquer um que estude de forma imparcial a história do gênero humano vai ser obrigado a reconhecer que não existe nenhum princípio moral seguido universalmente, pois é facilmente possível encontrar várias sociedades espalhadas no tempo e no espaço que seguiram princípios opostos e que chamariam de vício o que chamamos de virtude e vice-versa.

Suponhamos então que a mente, ao nascermos, é uma tabula rasa, uma folha em branco sem nada escrito. De que modo receberá as idéias? Donde e como as adquiri na prodigiosa variedade que a imaginação humana sempre atinge numa diversidade quase infinita? Donde extraiu suas certezas e razões? Da experiência: este é o fundamento de tudo o que sabemos; aí está a sua origem primeira. As observações que fazemos seja sobre os coisas do mundo, seja sobre o que temos em nossa mente, a respeito do que refletimos, abastecem a nossa inteligência de todos os materiais do pensamento.

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