No Dia de Todos os Santos, sagrado feriado religioso católico que no ano de 1755 caíra no 1º de novembro, a terra tremeu e Lisboa desabou. O pior terremoto da história européia ainda foi seguido por um maremoto e por um incêndio de seis dias, provocado pelo fogo das numerosas velas que enfeitavam as casas e altares da cidade em homenagem ao feriado.
Voltaire se impressionou com o evento. Não apenas com as proporções do desastre, mas sobretudo com a explicação que alguns religiosos lhe deram. A catástrofe seria expressão da vontade divina que assim punia os lisboetas pelos seus pecados. Voltaire não se convencia, segundo ele esta explicação era incompatível com a idéia de um Ser supremo bondoso e racional: “Por que Deus puniria apenas os portugueses famosos pela sua devoção e não os outros europeus?” “Por que puniria uma população inteira, em vez de poupar pessoas corretas e inocentes, crianças, idosos etc.?” Diriam os religiosos que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Ou seja, que Deus faz o melhor para nós mesmo quando achamos que fomos injustamente prejudicados. Mas Voltaire insistiria: “Por que um ser perfeito precisa provocar um sofrimento humano incompreensível?” Para Voltaire, existem três caminhos para enfrentar esta questão: Deus quer impedir o mau e não pode, ou pode e não quer, ou nem quer e nem pode. Mas, se quer e não pode, não é Deus (pois não seria, neste caso, onipotente); se pode e não quer, não é bom, o que é contrário a Deus. “Se quer e pode, o que é a única coisa compatível com a divindade, então qual é a razão da origem de males como esse?” O acaso?: uma combinação casual de fatores naturais (geológicos e marítimos) e fatores sociais (a construção de uma metrópole a beira-mar, prédios muito altos e próximos etc.)? Por que não? Para Voltaire precisamos ter a coragem de, por um lado, não achar que temos resposta para tudo, nem achar que não podemos entender nada (e é o que fazemos quando dizemos: “é a vontade de Deus” e encerramos nossas perguntas e inquietações), tampouco supor que as coisas sempre vão bem. “Dizer que algum dia tudo ficará bem – é nossa esperança. Tudo vai bem sempre, eis a nossa ilusão”.
Será esclarecedor atribuir tudo à vontade de Deus, mesmo os acontecimentos mais absurdos? Não seria estranho um Ser perfeito criar um ser (o homem) que precisa de correções, castigos, como se esta criatura tivesse saído da linha traçada pelo plano por Deus, surpreendendo o criador? Essas perguntas revelavam inconsistências na imagem tradicional que se faz de Deus, o que levou alguns filósofos como Voltaire a aderir ao deísmo, que também era seguido por Locke. O deísmo é, em geral, uma concepção acerca de Deus que se assenta em pelo menos uma das seguintes teses: 1) Existe um Deus criador, mas uma vez criado o mundo, ele não tem qualquer intervenção no curso dos acontecimentos; 2) Existe um Deus criador, mas não existe qualquer espécie de revelação divina que nos diga o que é correto ou incorreto acerca da nossa conduta moral, bastando para isso consultar livremente a razão humana; 3) Existe um ser supremo criador, mas esse ser não é o Deus revelado pelas religiões. Para o deísmo deus criou as leis que governam automaticamente o mundo natural, mas Ele não intervém mais no mundo depois da criação.
Cabe perguntar: se todos os homens (a maioria, pelo menos) são racionais, como explicar que a maioria tenha adotado uma idéia tão defeituosa a respeito do criador? Como nasce a superstição que contamina a nossa racionalidade?
O filósofo holandês Espinosa (1632-77) talvez seja o que nos dê a resposta mais radical para estas perguntas. Segundo ele, a superstição faz parte da condição humana e pode nos fornecer conforto diante das incertezas que nos angustiam e/ou nos aprisionar em um mundo de medo criado por nós mesmo. Ela nasce de um preconceito, ou seja, uma idéia sem fundamento, uma conclusão sem premissas. Sempre existirá algum preconceito, porque sempre haverá algo que ignoramos, no entanto ele só se torna prejudicial quando nos faz pensar que “já aprendemos tudo que tínhamos para aprender”.
A superstição é fruto do medo de não alcançar os bens que desejamos ou de sermos atingidos por males futuros, mas também da esperança de atingir esses bens ou evitar esses males. A outra raiz da superstição é a crença de que as forças que organizam, controlam nossas vidas está fora do mundo, são transcendentes e regem nossos destinos de uma forma incompreensível à razão humana. Esse papel pode ser atribuído aos astros, a deus ou a qualquer outra “força superior”.
Ainda segundo Espinosa, existe um pai de todos os outros preconceitos. O homem tem o mal hábito de julgar que o mundo funciona e age da mesma forma que ele próprio, como se o mundo se espelhasse no homem. Assim, como os homens sempre agem motivados por finalidades, o homem supõe por analogia que todo o mundo e todos os seres que o habitam só existem e agem em função de uma finalidade; e, como ele encontra no mundo várias coisas que lhe são úteis, conclui que tudo que Deus criou tem por finalidade servir ao homem.
Segundo Espinosa, além da grande arrogância de julgar que as coisas do mundo só têm valor como instrumentos para a satisfação humana, este preconceito de se espelhar em si mesmo para explicar o outros e o mundo, levou a uma visão supersticiosa da divindade, baseada na imagem que o homem tem de si mesmo. Para explicar a criação de um mundo a seu próprio serviço, o ser humano precisou imaginar um ser supremo que age e conduz as coisas da mesma maneira que nós próprios faríamos: foi o homem que criou este Deus à sua imagem e semelhança. Espinosa, no entanto, não é uma ateu, tampouco um deísta (como Voltaire), pelo contrário, ele se considerava religioso. Sua filosofia se propõe a mostrar racionalmente a existência de Deus, um ser eterno que se identifica com a natureza, ou seja não houve criação, a natureza sempre existiu e é simplesmente sinônimo de Deus. Não se trata aqui de estudar a filosofia de Espinosa, mas de apontar mais algumas suas idéias úteis para a nossa discussão. Para ele a conseqüência desta idéia de um ser supremo que tudo fez para o homem é que este deve em troca lhe manifestar sua gratidão e honrá-lo. Assim nascem os cultos, que servirão para conquistarmos a afeição deste Deus para que deste modo Ele nos seja favorável e dirija a natureza para saciar nossos desejos.
Deste modo, se por um lado, a superstição dá uma resposta reconfortante a nossas incertezas, por outro lado, acaba gerando mais medo, pois nunca sabemos exatamente qual seria a maneira mais correta de cultuar a Deus. As religiões seriam criadas para resolver esta dúvida atemorizante, pois elas instauram um grupo de homens especiais encarregados de realizar os cultos, receber revelações ou profecias do ser supremo e interpretar as vontades secretas Dele. No entanto, o sacerdote ou o teólogo poderá sustentar o poder da superstição, aterrorizando o fiel com o medo da punição. Aproveitando-se da ignorância e do terror.
Tanto Espinosa quanto Voltaire, por diferentes caminhos, tentaram formular um conceito de Deus que fosse compatível com os nossos maiores bens: a razão e a liberdade.
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