terça-feira, 31 de março de 2009

John Locke - vida e obra

John Locke e o individualismo Liberal
O estado de natureza. Juntamente com Hobbes e Rousseau, Locke defende uma teoria dos direitos naturais (ou jusnaturalismo). Todos três argumentam que a vida civil é criada através de um contrato social pelo qual os homens superam o estado de natureza em que viviam isoladamente. Ao contrário de Aristóteles, estes autores discordam da idéia que afirma que os homens são guiados pelo instinto à vida social. O estado de natureza era, segundo Locke, uma situação real e historicamente determinada pela qual passara, ainda que em épocas diversas, a maior parte da humanidade e na qual se encontravam ainda alguns povos, como as tribos norte-americanas. Esse estado de natureza diferia do estado de guerra segundo Hobbes, baseado na insegurança e na violência, por ser um estado de relativa paz, concórdia e harmonia. Nesse estado pacífico os homens já eram dotados de razão e desfrutavam da propriedade que designava simultaneamente a vida, a liberdade e os bens como direitos naturais do ser humano.
A teoria da propriedade. Locke utiliza também a noção de propriedade numa segunda acepção que, em sentido estrito, significa especificamente a posse de bens móveis ou imóveis. A teoria da propriedade de Locke, que é muito inovadora para sua época, também difere bastante da de Hobbes. Para Hobbes, a propriedade inexiste no estado de natureza e foi instituída pelo Estado-Leviatã após a formação da sociedade civil. Assim como a criou, o Estado pode também suprimir a propriedade dos súditos. Para Locke, ao contrário, a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado. O homem era naturalmente livre e proprietário de sua pessoa e de seu trabalho. Como a terra fora dada por Deus em comum a todos os homens, ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado natural o homem tornava-a sua propriedade privada, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens. O trabalho era, pois, na concepção de Locke, o fundamento originário da propriedade. Se a propriedade era instituída pelo trabalho, este, por sua vez, impunha limitações à propriedade. Inicialmente, quando "todo o mundo era como a América", o limite da propriedade era fixado pela capacidade de trabalho do ser humano, situação que muda somente com o advento do dinheiro.
O Contrato Social. O estado de natureza, relativamente pacífico, não está isento de inconvenientes, como a violação da propriedade (vida, liberdade e bens) que, na falta de lei estabelecida, de juiz imparcial e de força coercitiva para impor a execução das sentenças, coloca os indivíduos singulares em estado de guerra uns contra os outros. É a necessidade de superar esses inconvenientes que, segundo Locke, leva os homens a se unirem e estabelecerem livremente entre si o contrato social, que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil. Esta é formada por um corpo político único, dotado de legislação, de judicatura e da força concentrada da comunidade. Seu objetivo principal é a preservação da propriedade e a proteção da comunidade tanto dos perigos internos quanto das invasões estrangeiras. O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato hobbesiano. Em Hobbes, os homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual, visando a preservação de suas vidas, transferem a um rei ou assembléia a força coercitiva da comunidade, trocando voluntariamente sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã. Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. No estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo político unitário.
A Sociedade Política ou civil. Assim, a Passagem do estado de natureza Para a sociedade Política ou civil (Locke não distingue entre ambas) se opera quando, através do contrato social, os indivíduos singulares dão seu consentimento unânime para a entrada no estado civil. Estabelecido o estado civil, o passo seguinte é a escolha pela comunidade de uma determinada forma de governo (monarquia, a oligarquia ou a democracia ou ainda uma forma mista). Na escolha do governo, a unanimidade do contrato originário cede lugar ao princípio da maioria, segundo o qual prevalece a decisão majoritária e, simultaneamente, são respeitados os direitos da minoria.Na concepção de Locke, porém, qualquer que seja a sua forma, "todo o governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade". Definida a forma de governo, cabe igualmente à maioria escolher o poder legislativo, que Locke, conferindo-lhe urna superioridade sobre os demais poderes, denomina de poder supremo,ao qual deve ser subordinado o poder executivo.Em suma, o livre consentimento dos indivíduos para o estabelecimento da sociedade, o livre consentimento da comunidade para a formação do governo, a proteção dos direitos de propriedade pelo governo, o controle do executivo pelo legislativo e o controle do governo pela sociedade, são, para Locke, os principais fundamentos do estado civil.
O direito de resistência. No que diz respeito às relações entre o governo e a sociedade, Locke afirma que, quando o executivo ou o legislativo violam a lei estabelecida e atentam contra a propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que fora destinado, tornando-se ilegal e degenerando em tirania. O que define a tirania é o exercício do poder para além do direito, visa o interesse próprio e não o bem público ou comum. Com efeito, a violação deliberada e sistemática da propriedade (posses, vida e liberdade) e o uso contínuo da força sem amparo legal colocam o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo ao povo o legítimo direito de resistência à opressão e à tirania. O estado de guerra imposto ao povo pelo governo configura a dissolução do estado civil e o retorno ao estado de natureza, onde a inexistência de um árbitro comum faz de Deus o único juiz, expressão utilizada por Locke para indicar que, esgotadas todas as alternativas, o impasse só pode ser decidido pela força. Segundo Locke, a doutrina da legitimidade da resistência ao exercício ilegal do poder reconhece ao povo, quando este não tem outro recurso ou a quem apelar para sua proteção, o direito de recorrer a força para a deposição do governo rebelde. O direito do povo à resistência é legítimo tanto para defender-se da opressão de um governo tirânico como para libertar-se do domínio de uma nação estrangeira. Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e à propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil e ele é considerado por isso o pai do individualismo liberal. Através dos princípios de um direito natural preexistente ao Estado, de um Estado baseado no consenso e cujo poder é limitado pela sociedade, de subordinação do poder executivo ao poder legislativo, de direito de resistência, Locke forneceu a justificação moral, política e ideológica para as revoluções burguesas que varreriam o mundo nas décadas seguintes, erguendo Estados liberais sobre os escombros do Antigo Regime. Além de sua atuação direta na “Revolução Gloriosa” (veja o item abaixo) , ele influenciou a revolução norte-americana, onde a declaração de independência foi redigida e a guerra de libertação foi travada em termos de direitos naturais e de direito de resistência para fundamentar a ruptura com o sistema colonial britânico. Assim como influenciou ainda os filósofos iluministas franceses, principalmente Voltaire e Montesquieu e, através deles, a Revolução Francesa de 1789 e a declaração de direitos do homem e do cidadão.
As Revoluções Inglesas. "Em defesa da Liberdade, do Parlamento e da Religião Protestante", com este lema gravado em seu estandarte Guilherme de Orange desembarcou em solo britânico para depor o rei Jaime II e encerrar em 1688 um longo e tumultuado período da história inglesa. O século XVII foi marcado pelo antagonismo entre a Coroa e o Parlamento, controlados, respectivamente, pela dinastia Stuart, defensora do absolutismo, e a burguesia ascendente, partidária do liberalismo. Esse conflito assumiu também conotações religiosas e se mesclou com as lutas sectárias entre católicos, anglicanos, presbiterianos e puritanos. Finalmente, a crise político-religiosa foi agravada pela rivalidade econômica entre os beneficiários dos privilégios e monopólios mercantilistas concedidos pelo Estado e os setores que advogavam a liberdade de comércio e de produção. Em 1640, o confronto entre o rei Carlos I e o Parlamento envolveu o país numa sangrenta guerra civil que só terminou em 1649 com a vitória das forças parlamentares. A Revolução Puritana, como foram denominados esses eventos, culminou com a execução de Carlos I e a implantação da república na Inglaterra. Foi após os horrores da guerra civil, da consumação do regicídio e da instauração da férrea ditadura de Cromwell, que Thomas Hobbes, refugiado na França, publicou em 1651 o Leviatã. O livro era uma apologia do Estado todo-poderoso que, monopolizando a força concentrada da comunidade, torna-se fiador da vida, da paz e da segurança dos súditos. O Protetorado de Cromwell, apoiado no exército e na burguesia puritana, transformou a Inglaterra numa grande potência naval e comercial. Em 1660 a morte do Lorde Protetor envolveu o país numa crise política cuja solução, para evitar uma nova guerra civil, foi a restauração da monarquia e o retorno dos Stuart ao trono inglês. Durante a Restauração (1660-88) reativou-se o conflito entre a Coroa e o Parlamento, que se opunha à política pró-católica e pró-francesa dos Stuart. Em 1680, no reinado de Carlos 11, o Parlamento cindiu-se em dois partidos, os Tories e os Whigs, representando, respectivamente, os conservadores e os liberais. A crise da Restauração chegou ao auge no reinado de Jaime 11, soberano católico e absolutista. Os abusos reais levaram à união dos Tories e Whigs que, aliando-se a Guilherme de Orange, chefe de Estado da Holanda e genro de Jaime 11, organizaram uma conspiração contra o monarca "papista". Em 1688, Guilherme de Orange aportou no país à frente de um exército e, após a deposição de Jaime 11, recebeu a coroa do Parlamento. A Revolução Gloriosa assinalou o triunfo do liberalismo político sobre o absolutismo e, com a aprovação do Bill of Rights em 1689, assegurou a supremacia legal do Parlamento sobre a realeza e instituiu na Inglaterra uma monarquia limitada. John Locke (1632-1704) que, como opositor dos Stuart, se encontrava refugiado na Holanda, retornou à Inglaterra após o triunfo da Revolução Gloriosa. Em 1689-90 publica suas principais obras: Cartas sobre a tolerância, Ensaio sobre o entendimento humano e os Dois tratados sobre o governo civil.O Segundo tratado é uma justificação ex post facto da Revolução Gloriosa, onde Locke fundamenta a legitimidade da deposição de Jaime 11 por Guilherme de Orange e pelo Parlamento com base na doutrina do direito de resistência. Segundo o autor, seu ensaio estava “destinado a confirmar a entronização de nosso Grande Restaurador, o atual Rei Guilherme; a justificar seu título em razão do consentimento do povo, pelo que, sendo o único dos governos legais, ele o possui de modo mais completo e claro do que qualquer outro príncipe da cristandade". Locke nasceu em 1632 no seio de uma família burguesa da cidade de Bristol. Seu pai, um comerciante puritano, combateu na guerra civil nas fileiras do exército do Parlamento. Em 1652 Locke foi estudar em Oxford, formando-se em medicina e tornando-se posteriormente professor daquela Universidade. Em 1666 foi requisitado como médico e conselheiro de lorde Shaftesbury, destacado político liberal, líder dos Whigs e opositor do rei Carlos II no Parlamento. Shaftesbury foi o mentor político de Locke, exercendo grande influência em sua formação liberal. Em 1681, acusado de conspirar contra Carlos II, Shaftesbury foi obrigado a exilar-se na Holanda, onde faleceu dois anos depois. O envolvimento na conspiração de seu patrono obrigou Locke também a refugiar-se na Holanda em 1683, de onde só retornou após a queda de Jaime II.
por Leonel Itaussu (Em "Os Clássicos da Política", org. Francisco C. Weffort, Ed. Ática, 1989, pág. 80-89)

Rousseau II - seminário 4 (continuação)

"Efetivamente, a piedade será tanto mais enérgica quanto o animal espectador se identificar mais
intimamente com o animal sofredor. Ora, é evidente que essa identificação teve de ser infinitamente mais estreita no estado de natureza que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor próprio, e é a reflexão que o fortifica; é ela que faz o homem cair em si; é ela que o separa de tudo que o incomoda e o aflige. (...) Pode-se impunemente degolar o semelhante debaixo da janela; é só tapar os ouvidos e argumentar um pouco, para impedir que a natureza, revoltando-se nele, o identifique com aquele que se assassina. O homem selvagem não tem esse admirável talento, e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo sempre entregar-se, aturdido, ao primeiro sentimento de humanidade. Nos motins, nas brigas de rua, a populaça se aglomera, e o homem prudente se afasta; é a canalha, são as mulheres dos mercados que separam os brigões e impedem a gente honesta de se degolar mutuamente. (...)
Se Hobbes raciocinasse a fundo sobre os princípios que ele próprio estabeleceu, veria que o estado de natureza era aquele em que o cuidado de nossa conservação é menos prejudicial à dos outros, esse estado era, portanto, o mais próprio à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Mas ele diz precisamente o contrário, por ter feito entrar, fora de propósito, no cuidado da conservação do homem selvagem, a necessidade de satisfazer uma multidão de paixões que são obra da sociedade e que tornaram necessárias as lei.
(...)
O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: “Isto é meu”, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: "Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém !". Parece, porém, que as coisas já tinham chegado ao ponto de não mais poder ficar como estavam: porque essa idéia de propriedade, dependendo muito de idéias anteriores que só puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano. Pois vejamos
(...)
[O homem selvagem, antes] aprendeu a vencer os obstáculos da natureza, a combater quando necessário os outros animais, a disputar sua subsistência aos próprios homens, ou a se compensar do que era preciso ceder ao mais forte. (...) uma prudência maquinal lhe indicava as precauções mais necessárias à sua segurança, conforme ele se estendia por novos climas e territórios. As novas luzes que resultaram desse desenvolvimento aumentaram a sua superioridade sobre os outros animais, fazendo-lhe conhecê-la. Exercitou-se em lhes preparar armadilhas, logrou-os de mil maneiras; e, embora muitos o ultrapassassem em força no combate, ou em ligeireza na corrida, daqueles que o podiam servir ou prejudicar, tornou-se com o tempo o senhor de uns e o flagelo de outros. E, assim, o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo lhe produziu o primeiro movimento de orgulho; assim, mal sabendo ainda distinguir as ordens e contemplando-se como o primeiro por sua espécie, preparava-se já para pretender o mesmo como indivíduo.
Quanto mais o espírito se esclarecia, tanto mais as técnicas se aperfeiçoavam. Logo, deixando de adormecer na primeira árvore, ou de se retirar nas cavernas, encontraram-se certas espécies de machados de pedras duras e afiadas que serviram para cortar a madeira, cavar a terra e fazer cabanas de galhos, que ocorreu, em seguida, endurecer com argila e barro. Foi a época de uma primeira revolução que formou o estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade, de onde já nasceram, talvez, muitas rixas e combates. Entretanto, como os mais fortes foram, provavelmente, os primeiros a fazer alojamentos que se sentiam capazes de defender, é de se acreditar que os fracos tenham achado mais simples e mais seguro imitá-los do que tentar desalojá-los: e, quanto aos que já tinham cabanas, cada qual pouco procurou apropriar-se da do vizinho, menos porque lhe não pertencia do que lhe era inútil, não podendo apossar-se dela sem se expor a um combate muito vivo com a família que a ocupava. (...)
Instruído pela experiência de que o amor do bem-estar é o único móvel das ações humanas, achou-se
em estado de distinguir as raras ocasiões em que o interesse comum lhe devia fazer contar com a
assistência dos seus semelhantes, e as mais raras ainda em que a concorrência lhe devia fazer desconfiar
deles. (..)Eis como os homens puderam, insensivelmente, adquirir uma idéia grosseira dos compromissos mútuos e da vantagem de os cumprir, mas somente na medida em que podia exigi-lo o interesse presente e sensível; porque a previdência nada era para eles; e, longe de se ocuparem com um porvir afastado, nem mesmo pensavam no dia seguinte.(...)

Nesse novo estado, com uma vida simples e solitária, necessidades muito limitadas e os instrumentos que haviam inventado para as prover, os homens, gozando de bastante lazer, empregaram-no em procurar várias comodidades desconhecidas dos seus pais; e foi o primeiro jugo que se impuseram sem pensar e a primeira fonte de males que prepararam para os seus descendentes; porque, além de continuarem assim a languescer o corpo e o espírito, tendo essas comodidades, com o hábito, perdido quase todo o seu encanto e, ao mesmo tempo, degenerando em verdadeiras necessidades, a privação delas se tornou muito mais cruel do que doce era a sua posse; e, infeliz por tê-las perdido, não se era feliz possuindo-as. (...)

A medida que as idéias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração (amor conjugal e dos pais) se exercitam, o gênero humano continua a se domesticar, as ligações se estendem e os laços se apertam. Adquire-se o hábito de se reunir diante das cabanas ou em torno de uma grande árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e da ociosidade, tornam-se divertimento, ou antes, ocupação dos homens e das mulheres ociosos e
agrupados. Cada um começa a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima pública tem um preço. Aquele que canta ou dança melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destro ou o mais eloqüente, torna-se o mais considerado. E foi esse o primeiro passo para a desigualdade e para o vício, ao mesmo tempo: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestos à felicidade e à inocência. (...)

Logo que os homens começaram a se apreciar mutuamente, e que a idéia da consideração se formou em seu espírito, cada um pretendeu ter direito a ela, e não foi mais possível faltar com ela impunemente a ninguém. Daí surgiram os primeiros deveres de civilidade, mesmo entre os selvagens; e daí, toda falta voluntária tornou-se um ultraje, porque, com o mal que resultava da injúria, o ofendido via nela também o desprezo à sua pessoa, muitas vezes mais insuportável do que o próprio mal. Foi assim que, punindo cada qual o desprezo que se lhe testemunhara de maneira proporcionada ao juízo que de si mesmo fazia, as vinganças se tornaram terríveis, e os homens sanguinários e cruéis. (...) Porque, segundo o axioma do sábio Locke, não pode haver injúria onde não há propriedade.

(...) enquanto se aplicaram exclusivamente a obras que um só podia fazer, e a artes que não necessitavam o concurso de muitas mãos, viveram livres, sãos, bons e felizes ,tanto quanto podiam ser pela sua natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de uma convivência independente. Mas, desde o instante que um homem teve necessidade do socorro de outro; desde que perceberam que era útil a um só ter provisões para dois ´[revolução da metalurgia e da agricultura], a igualdade desapareceu, a propriedade se introduziu, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que foi preciso regar com o suor dos homens, e nos quais, em breve, se viram germinar a escravidão e a miséria, a crescer com as colheitas.

Da cultura das terras resulta necessariamente a sua partilha, e, da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça: porque, para dar a cada um o seu, é preciso que cada um possa ter alguma coisa; de resto, como os homens começassem a levar suas vistas para o futuro, vendo todos que tinham alguns bens que perder, não houve nenhum que não receasse para si a represália dos males que pudesse causar a outrem. Essa origem é tanto mais natural quanto é impossível conceber a idéia da propriedade
surgindo fora da mão de obra; porque não se vê o que, para se apropriar das coisas que não fez, possa o homem acrescentar-lhe além do seu trabalho. (...)

Eis, pois, todas as nossas faculdades desenvolvidas, a memória e a imaginação em jogo, o amor-próprio interessado, a razão tornada ativa, e o espírito chegado quase ao termo da perfeição de que é suscetível. Eis todas as qualidades naturais postas em ação, o lugar e a sorte de cada homem estabelecidos, não somente sobre a quantidade dos bens e o poder de servir ou de prejudicar, mas sobre o espírito, a beleza, a força ou a habilidade, sobre o mérito ou os talentos; e, sendo essas qualidades as únicas que podiam atrair a consideração, logo foi preciso tê-las ou afetá-las. Foi preciso, para vantagem própria, mostrar-se diferente daquilo que se era de fato. Ser e parecer tornaram-se duas coisas inteiramente diferentes; e, dessa distinção, surgiram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que constituem o seu cortejo. Por outro lado, de livre e independente que era o homem outrora, ei-lo, por uma multidão de novas necessidades, submetido, por assim dizer, a toda a natureza e, principalmente, a todos os seus semelhantes, dos quais se torna escravo em certo sentido, mesmo tornando-se seu senhor: rico, tem necessidade dos seus serviços, pobre, tem necessidade de seu auxílio; e a mediocridade não o põe em estado de passar sem eles. É preciso, pois, que procure sem cessar interessá-los por sua sorte, e fazer-lhes encontrar, de fato ou em aparência, o próprio proveito em trabalhar para o dele: isso o torna velhaco e artificioso com uns, imperioso e duro com outros, e o põe na necessidade de abusar de todos aqueles de que precisa, quando não pode se fazer temer, e quando não é do seu interesse servi-los utilmente. Enfim, a ambição devoradora, o ardor de fazer fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que para se colocar acima dos outros, inspira a todos os homens uma negra tendência a se prejudicarem mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para dar o golpe com mais segurança, toma muitas vezes a máscara de benevolência; em uma palavra, concorrência e rivalidade de uma parte, e, de outra, oposição de interesses, e sempre o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem: todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente.

Devemos nos unir, lhes disse, para livrar da opressão os fracos, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence: instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a se conformar, que não façam acepção de pessoas e que de certo modo reparem os caprichos da, fortuna, submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos. Em uma palavra, em vez de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-las em um poder supremo que nos governe segundo leis sábias, que proteja e defenda todos os membros da associação, repila os inimigos comuns e nos mantenha em uma eterna concórdia." Foi preciso muito menos que o equivalente desse discurso para arrastar homens grosseiros, fáceis de seduzir, que aliás tinham muitos negócios que resolver entre si para poder passar sem árbitros, e muita avareza e ambição para poder passar muito tempo sem senhores. Todos correram para as suas cadeias de ferro, acreditando assegurar a própria liberdade; porque, com bastante razão para sentir as vantagens de um estabelecimento público, não tinham bastante experiência para prever os perigos que daí adviriam: os mais capazes de pressentir os abusos eram precisamente aqueles que contavam tirar partido deles. E os próprios sábios viram que era preciso se resolverem a sacrificar uma parte de sua liberdade para a conservação da outra, como um ferido deixa que lhe cortem um braço para salvar o resto do corpo. Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram sem remédio a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, de uma astuta usurpação fizeram um direito irrevogável, e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram para o futuro todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria."
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens.

domingo, 29 de março de 2009

Introduções ao pensamento de Rousseau

Para os que desejam iniciar mais cedo o trabalho sobre Rousseau, envio duas indicações:
www.mundodosfilosofos.com.br/liberdade-estado-rousseau.htm
filosofando-rejane.blogspot.com/2008/05/jean-jacques-rousseau.html
Mais textos serão disponibilizados assim que forem apresentados os seminários sobre Hobbes.

Natureza e sociedade em Hobbes, Rousseau e Locke

por Marilena Chauí (profª de filosofia na USP)
O conceito de estado de natureza tem a função de explicar a situação pré-social na qual os indivíduos existem isoladamente. Duas foram as principais concepções do estado de natureza:A concepção de Hobbes (no século XVII), segundo a qual, em estado de natureza, os indivíduos vivem isolados e em luta permanente, vigorando a guerra de todos contra todos ou "o homem lobo do homem". Nesse estado, reina o medo e, principalmente, o grande medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam. Essas duas atitudes são inúteis, pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas. A vida não tem garantias; a posse não tem reconhecimento e, portanto, não existe; a única lei é a força do mais forte, que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar;A concepção de Rousseau (no século XVIII), segundo a qual, em estado de natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, pelo grito e pelo canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um terreno e diz: "É meu". A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade privada, dá origem ao estado de sociedade, que corresponde, agora, ao estado de natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos.O estado de natureza de Hobbes e o estado de sociedade de Rousseau evidenciam uma percepção do social como luta entre fracos e fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da força. Para fazer cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem passar à sociedade civil, isto é, ao Estado Civil, criando o poder político e as leis.A passagem do estado de natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a soberania.Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o Direito Romano – "Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu" – e a Lei Régia romana – "O poder é conferido ao soberano pelo povo" – para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social.Parte-se do conceito de direito natural: por natureza, todo indivíduo tem direito á vida, ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por natureza, todos são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais forte e outros mais fracos. Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes foram livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado.A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contato social ou o pacto político. Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos naturais e são livres, possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro, e se consentem voluntária e livremente nisso, então dão ao soberano algo que possuem, legitimando o poder da soberania. Assim, por direito natural, os indivíduos formam a vontade livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigi-los.Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado. Para Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado.A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande importância: o pensamento político já não fala em comunidade, mas em sociedade. A idéia de comunidade pressupõe um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, que compartilha os mesmos bens, as mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e que possui um destino comum.A idéia de sociedade, ao contrário, pressupõe a existência de indivíduos independentes e isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que decidem, por um ato voluntário, tornar-se sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos. A comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina, a sociedade, a de uma coletividade voluntária, histórica e humana.A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da sociedade vivendo sob o direito civil, isto é, sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano. Feito o pacto ou o contrato, os contratantes transferiram o direito natural ao soberano e com isso o autorizam a transformá-lo em direito civil ou direito positivo, garantindo a vida, a liberdade e a propriedade privada dos governados. Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao uso da força e da violência, da vingança contra os crimes, da regulamentação dos contatos econômicos, isto é, a instituição jurídica da propriedade privada, e de outros contratos sociais (como, por exemplo, o casamento civil, a legislação sobre a herança, etc.).Quem é o soberano? Hobbes e Rousseau diferem na resposta a essa pergunta.Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática. O fundamental não é o número dos governantes, mas a determinação de quem possui o poder ou a soberania. Esta pertence de modo absoluto ao Estado, que, por meio das instituições públicas, tem o poder para promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a propriedade privada e exigir obediência incondicional dos governados, desde que respeite dois direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano foi criado. O soberano detém a espada e a lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens.Para Rousseau, o soberano é o povo, entendido como vontade geral, pessoa moral, coletiva, livre e corpo político de cidadãos. Os indivíduos, pelo contrato, criaram-se a si mesmos como povo e é a este que transferem os direitos naturais para que sejam transformados em direitos civis. Assim sendo, o governante não é o soberano, mas o representante da soberania popular. Os indivíduos aceitam perder a liberdade natural: aceitam perder a posse natural para ganhar a individualidade civil, isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e nela se fazem representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do governante que os representa chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e súditos das leis.John Locke e a teoria liberal – No pensamento político de Hobbes e de Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no estado de natureza (em Hobbes) e no estado de sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-la. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão.De fato, embora o capitalismo estivesse em via de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse incontestável, o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse uma legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realiza e à nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século XVIII.Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho.Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural?Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o possuiria por meio do suor de seu rosto. Por todos esses motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por isso, de origem divina, ela é um direito natural.O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural da propriedade.Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade.O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres, mas também como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros, seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo para adquirir propriedades, seja porque são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade.Se a função do estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano?A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da Independência norte-americana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século XX, com pensadores como Max Weber, dirá que a função do Estado é tríplice:Por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a idéia de liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas;Visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercala-se uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos da sociedade civil;O Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Natureza Humana segundo Hobbes

«Hobbes pode facilmente recorrer à experiência quotidiana para provar a sua tese central sobre a conduta humana, que é, em poucas palavras, que todos somos egoístas e estamos dispostos a aproveitar-se dos outros em nosso próprio benefício. Hobbes se defende da acusação de pessimismo, dizendo que o comportamento cotidiano dos homens sustenta suas teses: Qual é a opinião que os homens têm do seu próximo quando está armado? Quando tranca as suas portas? Que opinião tem dos seus criados e dos seus filhos quando fecha a cadeados os seus cofres? Por outras palavras, o que fazemos diariamente demonstra que não confiamos uns nos outros, e sim pensamos que todos perseguem apenas seu interesse pessoal, inclusivamente à custa dos outros. Hobbes acredita que “num estado de natureza”, em que os homens são mais ou menos iguais e não estão limitados pelas leis de uma sociedade determinada, estes tentam sobreviver a qualquer preço. Como a sobrevivência é prioritária e os seus desejos naturais não podem considerar-se bons nem maus em si mesmos. A moral é, portanto, irrelevante neste estado. A “condição natural da humanidade” é aquela em que cada indivíduo choca com todos os outros, pois todos tentam alcançar a segurança. Hobbes utiliza duas analogias bastante gráficas. Na primeira fala da “guerra” de “todos contra todos”, uma luta permanente que se desencadearia se os homens não vivessem em segurança e tivessem que depender por completo dos seus próprios recursos. Não existiria então nenhuma das vantagens que oferece a sociedade: nem a indústria, nem a agricultura, nem a navegação, nem o conhecimento científico. Haveria um medo contínuo e a ameaça de morte violenta. A listagem das misérias que corresponde ao estado natural termina com a sua frase “a vida do homem” seria “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”.Segundo Hobbes, é indiferente que as suas hipóteses acerca de uma natureza humana independente de constrangimentos sociais não possam ser comprovadas historicamente – embora cite o exemplo concreto de “selvagens de certos lugares da América” que não possuíam nenhuma espécie de governo. O que para ele não é indiferente é a idéia de que não pode haver sociedade sem governo e sem as ameaças da lei, pois neste caso haveria apenas indivíduos antagônicos entre si. Todavia, Hobbes não sugere em nenhum momento que o impulso de auto-proteção e de defesa do interesse pessoal seja mau. Nunca condena o egoísmo nem a indiferença para com os outros. Assim são os homens, diz, e todas as formas de organização social que ignorarem esse fato fracassarão. A razão para estabelecermos relações sociais deve ser precisamente que fazê-lo convém aos nossos próprios interesses. A teoria política de Hobbes tem a sua base mais firme na procura sistemática do benefício pessoal e racional.A segunda imagem de Hobbes é a que compara a vida humana a uma corrida, em que temos que supor que não há outro objetivo nem outro prêmio a não ser o de conseguir chegar em primeiro lugar. A competição – o desejo de superar o outro – é parte do enredo das nossas vidas: ou queremos alcançar algo à custa dos outros, ou queremos defender aquilo que já conquistamos. Também procuramos a glória e a honra para nós mesmos. Nessa corrida pode haver muita crueldade – “ver cair o outro produz grande alegria” – embora Hobbes reconheça que também possa haver compaixão e auxílio aos outros. Pode até ser que, por caridade, alguém afaste da corrida um rival. No entanto, o mais importante é o individualismo agressivo, alimentado pelo medo de que os outros nos privem do que queremos. Hobbes fala de um direito natural, que não é um direito à justiça, pelo contrário, cada homem “tem direito a tudo, incluindo dispor do corpo de outros”. O nosso direito natural básico é o de usar o mais possível as nossas capacidades para sobreviver. Nasce assim, na filosofia, uma concepção dos direitos totalmente distinta das que colocam no outro lado da balança os deveres e as obrigações. Se cada pessoa exigir que se reconheçam os seus interesses, mas não estiver disposta a considerar os dos outros, a sociedade terá forçosamente uma base instável. Nenhuma sociedade pode se manter nessas condições, por isso Hobbes aceitará que se construa um sentido do dever, embora ela não seja natural.Terá Hobbes razão quando parte do pressuposto de que só nos interessa o nosso benefício pessoal? Na realidade, não está claro até que ponto queria acentuar realmente esse egoísmo. Uma interpretação extrema é a do egoísmo psicológico, segundo o qual um indivíduo só pode querer o seu próprio bem. Quer dizer, se te ajudo é porque quero o meu bem-estar, não o teu. Provavelmente desejo a satisfação que resulta de ser generoso. Hobbes até admite que uma pessoa pode ajudar outra na corrida da vida, e que até no estado de natureza os homens podem ser generosos. Mas como demonstrar que motivação desta ação não ação interesses pessoais, egoístas.Hobbes descreve a caridade dizendo que “nada pode convencer mais a um homem do poder que tem do que sentir-se capaz não apenas de cumprir os seus desejos, mas também de ajudar os outros a cumprir os seus”. E completa ainda: a compaixão é “a imaginação, ao ver as calamidades alheias, de que vamos sofrer também nós no futuro”. É óbvio o caráter egocêntrico desta atitude: o interesse pelos outros é um subproduto do interesse por nós mesmos. Quer dizer, eu realmente não me preocupo contigo a não ser que a tua situação difícil desencadeie em mim uma reação de simpatia que tem a sua origem na minha preocupação comigo mesmo. De igual modo, ajudar-te provoca em mim uma sensação bastante agradável de poder. O problema lógico, no entanto, radica no fato de Hobbes poder realmente afirmar que os interesses dos outros me são completamente indiferentes, mesmo que sejam meios para outra coisa qualquer.
O Bispo Butler, um filósofo do século XVIII, ataca Hobbes neste ponto, defendendo que o mero desejo pelo poder não permite discernir entre objetivos, pois não quer o poder só por si, mas para utilizá-lo de algum modo concreto. Para exercer poder sobre ti, deve existir algo na tua situação que eu queira mudar. Se, por exemplo, quero aliviar a tua dor porque assim me sinto superior, pode ser que isto seja basicamente egoísta, mas o que eu quero é aliviar-te e não apenas sentir-me superior. Pode pensar-se até que Hobbes pudesse estar de acordo com Butler. Depois de tudo, a sua definição de compaixão não equivale simplesmente ao medo de alguma calamidade futura. Supõe que ao vermos a desgraça alheia imaginamos que algo semelhante nos pode acontecer. A simpatia está unida ao conhecimento do que seria sofrer isso mesmo na nossa própria carne. Embora haja aqui uma grande dose de egoísmo, não se infere que o objeto da minha emoção seja a minha calamidade imaginada e não a calamidade real de outrem. É possível que a minha preocupação com os outros seja imperfeita, mas em parte continuará a ser uma preocupação com os outros e não apenas comigo. Hobbes reconhece que pode existir “afeto natural” dos pais para com os filhos, e que podemos sentir afeto por outras pessoas próximas de nós. É mais cético relativamente à ajuda que prestamos a estranhos e sugere que o fim dessas ações é “comprar amizade” ou, possivelmente, mediante o medo, “comprar a paz”. Ainda assim fica a sugestão de que a indiferença para com os outros não é total e que pelo menos podemo-nos preocupar com algumas pessoas. Provavelmente não se pode acusar Hobbes de defender um egoísmo psicológico total, mas a sua maneira de se concentrar no indivíduo à margem das restrições da sociedade leva-o a colocar o interesse pessoal em primeiro lugar. É como se a preocupação com os outros, embora possível, nunca pudesse ser sincera, uma vez que estaria sempre ligada aos nossos interesses pessoais básicos. Hobbes acredita que a sociedade humana deve construir-se a partir deste feito. Como o nosso impulso mais forte é o da sobrevivência individual, a sociedade deve justificar-se sobre a base do que convém à nossa segurança.»
Trigg, Roger (2001). Concepciones de la Naturaleza Humana. Uma Introducción Histórica. Madrid: Alianza Editorial, pp. 84-92 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

segunda-feira, 23 de março de 2009

Aristóteles em Brasília


Aristóteles no planalto
O que pensaria o célebre filósofo grego da Antigüidade diante do sistema político do Brasil contemporâneo? Reconheceria nele as idéias igualitárias da democracia ateniense?
por EDSON NUNES*
Não sei se foi por antiga magia ou tecnologia secreta que Aristóteles veio a dar em Brasília. Queria conhecer nossa Constituição, dizendo ser hábito seu empedernido. Encontrei-o por azar; expliquei lhe o básico, alguma bibliografia. E recolhi alguns de seus comentários.
Para ele o nosso sistema político não poderia ser chamado de “democracia” e, de fato, não o é, tecnicamente falando. A palavra designa somente regimes nos quais o povo detém o poder soberano; exercendo-o diretamente em assembléia, sem que tal poder conheça qualquer limite ou contrapeso institucional. Significa literalmente o “poder popular” e sua realização pressupõe a maior igualdade possível de todos perante a lei (isonomia) e quanto ao direito de participar da decisões públicas mediante a fala (isegoria). Tal igualdade fundamental torna impossível a representação política já que esta pressupõe a separação prática e formal entre representantes e representados, entre dirigentes e dirigidos. Assim, qualquer processo de escolha de magistrados, como votação ou concurso de provas e títulos, não é democrática pois toma os indivíduos pelas suas diferenças, ranqueando-os em melhores e piores. Por isso mesmo, a eleição popular de um presidente ou deputado; a de um juiz concursado, configurar-se-iam aristocráticas (de aristói – os melhores). O único método realmente democrático de seleção, quando não se pode decidir diretamente em assembléia, é o sorteio. Só aí não há discriminação de mérito, preservando-se a igualdade.
O governo que aqui se vê é uma mescla de oligarquia e democracia, o tipo mais comum de governo constitucional. Não existe nenhum poder ilimitado que subordine os demais; cada qual com sua autonomia e composição definidas pela Constituição. Compõem aristocracias o Judiciário e o Legislativo, selecionados seus membros entre os melhores do povo. O Executivo, ainda que por tempo limitado, encarna o princípio da realeza. O único componente realmente democrático do sistema encontra-se nas assembléias periódicas que elegem os magistrados (colégios eleitorais). A este governo misto, Aristóteles chamou de “politia” cuja tradução, pelo latim, é “república”.
Contudo, o que mais espantou Aristóteles é o estranho hábito que temos de garantir direitos políticos aos escravos. Calma, prezado leitor: custou-me também entender! É escravo por natureza aquele que não quis ou não pode desenvolver o hábito da escolha prudente, tornando-se assim incapaz de prever. Tal indivíduo necessita da direção de outrem não apenas na política como principalmente no trabalho, estabelecendo um laço de benefício mútuo com seu senhor: este planeja e organiza; aquele provê com sua energia. Note que não é o vínculo jurídico a caracterizar a escravidão, mas sua função: fica evidente que o assalariamento é uma espécie de escravidão por tempo! A questão que mais o perturbou foi a da qualidade da escolha de quem é desabituado dela até na direção de sua vida privada.
Depois de explicar-lhes os mecanismos de seleção de elites de nossa república; das diatribes de nossos sofistas (os marqueteiros); dos movimentos de nossos socialmente poderosos, tudo conspirando para a escolha responsável e melhor, entendeu que eu lhe fazia troça e foi à biblioteca ler nossa história política.
*Edison Nunes é professor do Departamento de Política e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Apostila de lógica - parte 2

Um passo importante que daremos agora é o do estudo dos conectores lógicos. São eles que reúnem duas idéias ou mais em uma declaração composta. Para facilitar o estudo, classificaremos eles em 4 tipos: disjunção, conexão, implicação e equivalência; e definiremos os seus usos legítimos.
Conjunção: “e”
Exemplo 1: “O aluno só será aprovado se possuir média superior a 5 (M) e freqüência superior a 75% (F)”
Um pai que vai a escola para descobrir se seu filho “passou de ano”, pode encontrar 4 situações diferentes: Ou o filho dele atingiu a média (M), mas não a freqüência (F); ou o filho dele não atingiu nem “M”, nem “F”; ou não atingiu “M”, mas atingiu “F”; ou atingiu “M” e “F”. Podemos representar os casos em uma tabela:
M //F // M e F
Ok //Não //Reprovado
Ok //Ok //Reprovado
Não //Não// Reprovado
Não //Ok// Aprovado

Como se observa, só no último caso o aluno é aprovado. Isto quer dizer que só no último caso o uso do conector “e” é legítimo, pois as duas declarações que ele liga são simultaneamente verdadeiras.
O outro conector lógico é o da disjunção (“ou”). O uso dele é legítimo se pelo menos uma das declarações que ele liga é verdadeira. Exemplo: “O jovem terá direito a meia-entrada no cinema se ele for (E) estudante ou tiver (M) menos de 18 anos”. Este é um caso em que “ou” quer dizer: “pelo menos uma das duas”. Ou seja, é possível que ambas aconteçam juntas sem problemas. Você é capaz de construir uma tabela para verificar quais as chances de uma pessoa qualquer ter direito à meia-entrada?
O terceiro conector é chamado condicional ou implicação ("se..., então..."). Ele vincula um acontecimento a uma condição, por exemplo, se eu digo a meus alunos: “Se chover, (então) eu não darei aula”, em que casos eu terei mentido, ou melhor, o uso do conector não será legítimo. Assim como nos casos anteriores, há 4 combinações possíveis de eventos: (1) chove e eu não dou aula; (2) chove e eu dou aula; (3) não chove e eu não dou aula; (4) não chove e eu dou aula. Só terei mentido no caso 2. Parece estranho, não é mesmo? Mas não é. Afinal, eu não disse que só faltaria se chovesse, nem que viria com certeza se não chovesse. Eu disse apenas que bastaria chover para eu faltar. Ou seja, para eu faltar seria suficiente chover, mas não disse que seria necessário chover para que eu faltasse. Afinal poderia haver um tempo bom, mas eu ficar adoecer. Abreviemos para construir uma tabela: “Se C, (então) A”
C // A // Se C, A
V // V // V
V // F // F
F // V// V
F // F// V

Outro exemplo do condicional: “Darei um churrasco se eu for promovido”. Não disse o que farei caso não seja promovido. Posso dar um churrasco por outras razões. Você consegue fazer esta tabela?
A dificuldade que surge deste conector condicional ocorre porque ela é apenas uma condição suficiente, diferente das condições que estamos acostumados a ouvir com freqüência, dos pais, por exemplo: “Eu deixo você fazer ‘X’ com uma (única) condição ‘Y’...”. Ou seja: “... acontecerá ‘Y’, somente se acontecer ‘X’”. Nesse caso, se ‘X’ não acontecer, inevitavelmente o outro ‘Y’ não acontecerá e vice-versa. Assim, como ‘X’ é condição necessária (além de suficiente) para que ‘Y’ aconteça, se não houver ‘Y’ é porque não houve ‘X’. Um bom exemplo: “Os grevistas voltarão ao trabalho (‘T’) somente se os patrões fizerem uma nova proposta (‘P’) de reajuste”. A tabela abreviada ficaria assim:
T// P// Se T, P
V //V// V
V //F// F
F //V//F
F// F// V

A confusão entre as duas condições pode ser característica de uma estratégia de manipulação. Em um contrato de trabalho, podemos encontrar o seguinte artigo sobre a justa causa, por exemplo: “O trabalhador será demitido por justa causa se ele se ausentar sem justificativa ou desobedecer algum dos seus superiores”. Digamos que um candidato é demitido por justa causa porque ele quebrou uma das máquinas. Isto representa quebra do contrato por parte da empresa? Embora não seja uma demissão justa, baseando-nos apenas no que foi escrito sobre o contrato, não podemos concluir que o contrato foi quebrado. Isto sé teria acontecido se estivesse escrito assim: “O funcionário somente será demitido por justa causa se ele se ausentar sem justificativa ou desobedecer algum dos seus superiores”. Você concorda?

Veremos agora algumas falácias envolvendo o uso dos dois últimos conectores estudados, as condições suficientes e necessárias.
1 “Se o candidato receber apoio de todos os seus conhecidos, então com certeza ele será eleito”... “Bem, ele foi eleito, isto significa que ele obteve o apoio de todos os seus vizinhos
2 “Se o Brasil tivesse sido colonizado pela Inglaterra, sem dúvida hoje seríamos um país de primeiro mundo”... “Bem, como nós fomos colonizados pelos portugueses, só podíamos ser subdesenvolvidos mesmo.”
3 “Basta o político ser corrupto, para que a sociedade tenha o direito de arrancar-lhe o mandato”... “Já que o político ‘X’ teve seu mandato cassado, isto significa portanto que as suas corrupções foram descobertas”
4 “Se a escola pública não receber novas tecnologias, então ela terá resultados insatisfatórios” ... “A EE Rui Bloem só recebeu aparelhos ultrapassados, portanto certamente seus resultados não serão satisfatórios”

Reduções ao absurdo:
A redução ao absurdo é também conhecida como prova por contradição, trata-se de um tipo de argumento em que provamos a verdade da nossa idéia indiretamente, atacando a idéia adversária. Isto é feito mostrando-se as consequências absurdas a que a idéia do adversário nos levaria. A “redução” só funciona, no entanto, quando as idéias opostas são contraditórias, como por exemplos as duas seguintes: (A) “A repressão é a melhor solução para a criminalidade” e (B) “A repressão não é o melhor solução para a criminalidade”. A e B expressam idéias contraditórias porque se uma for verdadeira a outra será falsa necessariamente, e vice-versa.
Imaginemos que A e B estão debatendo:
A: “A repressão é o melhor remédio para a criminalidade”
B: “Se a repressão fosse o melhor remédio para a criminalidade, bandido sairia da cadeia santo”
Como B procedeu para levar a idéia inicial de A a esta consequência absurda e ridícula. Será que ele colocou palavras na boca de A? Na verdade não. A única coisa que B fez foi assumir a idéia de A (“A repressão é o melhor...”) como premissa, e juntou a ela outras premissas ocultas normalmente aceitas: “A repressão é muito grande na cadeia”, “Solucionar a criminalidade significa diminui o número de bandidos”, “A cadeia não ‘recupera’ nenhum bandido, pelo contrário só o piora”. Qual a conseqüência de todas essas premissas juntas? Uma contradição: propor que haverá mais segurança se mandarmos os bandidos para um lugar onde eles se tornam ainda mais perigosos.
Retomando: o que B fez foi provar de que a sua idéia estava certa mostrando que a idéia oposta (A) levava a conseqüências contraditórias. E, como vimos, se a idéia de B fosse falsa, a idéia de A seria verdadeira, e vice-versa. E como idéia de A nos conduziu a uma conseqüência insustentável, absurda ela foi refutada (comprovadamente falsa), não tivemos escolha: assumimos B. Alguns exemplos:
1. A: “As viagens são grande fonte de cultura”
B: “Se viagem fosse cultura, todo marinheiro seria um sábio”

2. A: “Só não consegue subir na vida quem não se esforça o bastante”
B: “Se bastasse esforço para subir na vida, o catador de lixo seria milionário”

Você encontra abaixo mais alguns exemplos de reduções ao absurdo. Você é capaz de dizer qual é a idéia a que cada uma delas se opõe e tenta combater? Para fazer isso, construa um diálogo com duas pessoas defendendo idéias opostas.
1. “Se seus amigos se jogassem de uma ponte, você também se jogaria”
2. “Se todo líder do século XXI fosse um acadêmico, então o Lula seria doutor”
3. “Se ‘toda opinião é válida’ fosse uma idéia verdadeira, então a pessoa que a defende seria obrigada a se contradizer, pois ‘Nem toda opinião é válida’ também é uma opinião”

terça-feira, 17 de março de 2009

O homem segundo Aristóteles

Para auxiliar os alunos do Fernão que apresentarão o seminário sobre Aristóteles, deixo abaixo alguns comentários gerais sobre seu livro A Política (fonte:http://www.colegiosaofrancisco.com.br/) e, em seguida, sobre o sentido da escravidão tal como aparece no texto.

A política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim último do estado é a virtude, isto é, a formação moral dos cidadãos e o conjunto dos meios necessários para isso. O estado é um organismo moral, condição e complemento da atividade moral individual, e fundamento primeiro da suprema atividade contemplativa. A política, contudo, é distinta da moral, porquanto esta tem como objetivo o indivíduo, aquela a coletividade. A ética é a doutrina moral individual, a política é a doutrina moral social. Desta ciência trata Aristóteles precisamente na Política, de que acima se falou.

O estado, então, é superior ao indivíduo, porquanto a coletividade é superior ao indivíduo, o bem comum superior ao bem particular. Unicamente no estado efetua-se a satisfação de todas as necessidades, pois o homem, sendo naturalmente animal social, político, não pode realizar a sua perfeição sem a sociedade do estado.

Visto que o estado se compõe de uma comunidade de famílias, assim como estas se compõem de muitos indivíduos, antes de tratar propriamente do estado será mister falar da família, que precede cronologicamente o estado, como as partes precedem o todo. Segundo Aristóteles, a família compõe-se de quatro elementos: os filhos, a mulher, os bens, os escravos; além, naturalmente, do chefe a que pertence a direção da família. Deve ele guiar os filhos e as mulheres, em razão da imperfeição destes. Deve fazer frutificar seus bens, porquanto a família, além de um fim educativo, tem também um fim econômico. E, como ao estado, é-lhe essencial a propriedade, pois os homens têm necessidades materiais. No entanto, para que a propriedade seja produtora, são necessários instrumentos inanimados e animados; estes últimos seriam os escravos.

Aristóteles não nega a natureza humana ao escravo; mas constata que na sociedade são necessários também os trabalhos materiais, que exigem indivíduos particulares, a que fica assim tirada fatalmente a possibilidade de providenciar a cultura da alma, visto ser necessário, para tanto, tempo e liberdade, bem como aptas qualidades espirituais, excluídas pelas próprias características qualidades materiais de tais indivíduos. Daí a escravidão.

Vejamos, agora, o estado em particular. O estado surge, pelo fato de ser o homem um animal naturalmente social, político. O estado provê, inicialmente, a satisfação daquelas necessidades materiais, negativas e positivas, defesa e segurança, conservação e engrandecimento, de outro modo irrealizáveis. Mas o seu fim essencial é espiritual, isto é, deve promover a virtude e, consequentemente, a felicidade dos súditos mediante a ciência.

Compreende-se, então, como seja tarefa essencial do estado a educação, que deve desenvolver harmônica e hierarquicamente todas as faculdades: antes de tudo as espirituais, intelectuais e, subordinadamente, as materiais, físicas. O fim da educação é formar homens mediante as artes liberais, importantíssimas a poesia e a música, e não máquinas, mediante um treinamento profissional. Eis porque Aristóteles, como Platão, condena o estado que, ao invés de se preocupar com uma pacífica educação científica e moral, visa a conquista e a guerra. E critica, dessa forma, a educação militar de Esparta, que faz da guerra a tarefa precípua do estado, e põe a conquista acima da virtude, enquanto a guerra, como o trabalho, são apenas meios para a paz e o lazer sapiente.

Não obstante a sua concepção ética do estado, Aristóteles, diversamente de Platão, salva o direito privado, a propriedade particular e a família. O comunismo como resolução total dos indivíduos e dos valores no estado é fantástico e irrealizável. O estado não é uma unidade substancial, e sim uma síntese de indivíduos substancialmente distintos. Se se quiser a unidade absoluta, será mister reduzir o estado à família e a família ao indivíduo; só este último possui aquela unidade substancial que falta aos dois precedentes. Reconhece Aristóteles a divisão platônica das castas, e, precisamente, duas classes reconhece: a dos homens livres, possuidores, isto é, a dos cidadãos e a dos escravos, dos trabalhadores, sem direitos políticos.

Quanto à forma exterior do estado, Aristóteles distingue três principais: a monarquia, que é o governo de um só, cujo caráter e valor estão na unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia, que é o governo de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é a oligarquia; a democracia, que é o governo de muitos, cujo caráter e valor estão na liberdade, e cuja degeneração é a demagogia.

Segundo Aristóteles, há homens que nascem menos "intelectivos" que outros: há homens cuja alma está menos habilitada para “inteligir” (compreender através da inteligência) e, portanto, para dirigir e comandar as partes menos racionais da alma humana; há outros homens que, ao contrário, têm vocação para dirigir, tanto a si quanto aos outros. Há homens que nascem habilitados a comandar e outros a serem comandados. Pois nem todos são capazes de desenvolver a habilidade da escolha prudente que qualifica os homens ao comando. Ao escravo falta a capacidade de decisão e deliberação, por isso não consegue agir senão sob a direção de outro homem. Nesse sentido, é do interesse do próprio escravo ser escravo. Contudo, como o próprio Aristóteles reconhece, permanece o problema de, por vezes, a natureza enganar-se. Há almas de escravos em corpos de homens livres e vice-versa. Isto seria conforme à natureza social do homem por mais uma razão: não é possível que todos se entreguem aos trabalhos braçais que garantem a satisfação das necessidades da cidade, pois se isto acontecesse, não haveria quem se dedicasse à política

segunda-feira, 16 de março de 2009

Resumo do seminário sobre a justiça segundo Platão

Para Platão, os seres humanos e a cidade (ou polis) possuem a mesma estrutura. A alma humana possui três partes: a desejante, que busca satisfação dos apetites do corpo, seja porque eles são necessários à sobrevivência ou apenas prazerosos; a parte colérica, que defende o corpo contra as agressões do meio ambiente e de outros humanos, reagindo à dor na proteção de nossa vida; e a parte racional ou intelectual, que se dedica ao conhecimento prático e teórico e à á moral. A cidade possui uma estrutura análoga, composta por três classes sociais: a classe econômica dos proprietários de terra, artesãos e comerciantes, que garante a sobrevivência material da cidade; a classe militar dos guerreiros, responsável pela defesa da cidade; e a classe dos magistrados, que garante o governo da cidade sob as leis. Um homem, diz Platão, é injusto quando a parte desejante (os apetites e prazeres) é mais forte do que as outras duas, dominando-as. Também é injusto quando a parte colérica (a agressividade) é mais poderosa do que a racional, dominando-a. O que é, pois, o homem justo? Aquele cuja razão (pensamento e vontade) é a parte mais forte da alma, impondo à desejante a virtude da temperança ou moderação, e à colérica, a virtude da coragem, que deve controlar os desejos. O homem justo é o homem virtuoso; a virtude, domínio racional sobre o desejo e a cólera. A justiça ética é a hierarquia das partes da alma, a superior dominando as inferiores.
O que é a justiça política? Essa mesma hierarquia, mas aplicada à comunidade. Como realizar a Cidade justa? Pela educação dos cidadãos, desde a primeira infância, a cidade deve tomar para si o cuidado total das crianças, educando-as para as funções necessárias à Cidade. A educação dos cidadãos submete as crianças a uma mesma formação inicial em cujo término passam por uma seleção: as menos aptas serão destinadas à classe econômica, enquanto as mais aptas prosseguirão os estudos. Uma nova seleção separa os jovens: os menos aptos serão destinados à classe militar enquanto os mais aptos continuarão a ser educados. O novo ciclo educacional ensina as ciências aos jovens e os submete a uma última seleção: os menos aptos serão os administradores da cidade enquanto os mais aptos prosseguirão os estudos. Aprendem, agora, a Filosofia, que os transformará em sábios legisladores, para que sejam a classe dirigente. A Cidade justa é governada pelos filósofos, administrada pelos cientistas, protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores. Cada classe cumprirá sua função para o bem da cidade porque desenvolveu adequadamente sua potencialidade, racionalmente dirigida pelos filósofos-governantes que, depois de árdua educação e seleção, são capazes de governar legitimamente, isto é, pelo interesse comum, o bem geral da cidade, concretizando a justiça. Em contrapartida, a Cidade injusta é aquela onde o governo está nas mãos dos proprietários – que não pensam no bem comum da polis e lutarão por interesses econômicos particulares -, ou na dos militares – que mergulharão a Cidade em guerras para satisfazer seus desejos particulares de honra e glória.
O destino da cidade injusta é a tirania, onde as leis não são respeitadas, porque elas são substituídas pela vontade pessoal e arbitrária de um poderoso. O tirano é escravo de seus apetites e submete a cidade a eles. Aquele que não é capaz de dominar a si mesmo é arrastado pelos seus desejos e arrasta todos a seu redor, tentando impô-los aos outros.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Apostila de lógica - parte 1

Não é à toa que os gregos, o povo que inventou a filosofia há 2.500 anos, tenha, na mesma época, criado a democracia, pois entre ambas existe grande afinidade. A filosofia dificilmente sobrevive em ambientes autoritários, onde não existe liberdade de pensamento. O controle do pensamento é a primeira coisa que todo o ditador, religioso ou político, procura impor. Os filósofos da Grécia antiga expunham as suas idéias e desafiavam os seus interlocutores a discuti-las livremente. Esta atitude, de que o filósofo Sócrates é o melhor exemplo, não tem nada de arrogante, porque é a atitude “humilde” de quem busca a verdade, reconhecendo as limitações que nosso conhecimento possui, e sabendo que a melhor maneira de superá-las é diminuir as chances de erros, submetendo nossas idéias à discussão pública. O objetivo neste caso não é “ganhar” o debate, mas sim verificar se nossas idéias são boas de fato, ou se possuem fraquezas que só conseguimos perceber com a ajuda e a crítica dos outros. Quando o debate nos faz perceber e admitir que uma idéia que defendemos não corresponde à realidade, não perdemos nada, pelo contrário, pois superamos a vaidade e a ilusão e demos mais um passo rumo à verdade.
No entanto, nem todos os gregos viam o debate como um caminho para se encontrar a verdade. A maioria dos gregos discutia com outra preocupação: como fazer os outros aceitarem minha opinião (seja ela comprovada ou não), como torná-la aparentemente melhor, ou seja, como convencer e persuadir? Em uma democracia direta – em que, ao contrário da atual democracia representativa, todos os cidadãos participavam pessoalmente do governo da cidade –, como era a grega na antiguidade, esta habilidade é considerada uma virtude. Quem domina a arte da palavra tem o poder de orientar a ação dos outros cidadãos e os destinos da cidade. Esta virtude pode ser aprendida e ensinada. Certos professores de retórica chegavam a cobrar pelo ensino das técnicas da persuasão, eram eles conhecidos como sofistas. Os filósofos, que estavam mais preocupados em evitar os erros na busca da verdade, criticaram os sofistas por eles venderem o conhecimento de técnicas de manipulação através de argumentos.
Veremos que um argumento é uma forma de conectar idéias para defender ou justificar conclusões (ou teses). Quando alguém pretender convencê-lo de algo, você deve ser capaz de analisar se a pessoa usa argumentos e se eles são válidos. O objetivo deste módulo é reconhecer e dominar o funcionamento dos argumentos válidos e das falácias (argumentos que parecem válidos, mas não o são).


Quando, no dia-a-dia, dizemos que algo “É lógico!”, geralmente queremos dizer que uma idéia é obviamente correta, ou que temos informações suficientes para concluir que sim. Por exemplo: _ “Você acha que Fulano vai passar na prova?” _ “É lógico que ele vai.” Podemos dizer que por trás desta segunda frase, existem outras, que formam um raciocínio e a sustentam: “(1) Ele vai passar na prova, pois (2) ele é inteligente e (3) se preparou para a prova, e (4) todos que possuem estas condições são aprovados”. Este raciocínio é um argumento, ou seja, um conjunto de afirmações relacionadas e organizadas de um modo em que uma delas (a conclusão) é sustentada, ou melhor, justificada pelas outras (as premissas). O exemplo é também um argumento válido, isto ocorre quando uma conclusão (1) é a conseqüência inevitável das suas razões (as premissas: 2, 3 e 4), quando ela é deduzida coerentemente das premissas 1 (nota:nem todo argumento é dedutivo) . Talvez você discorde do exemplo e diga que nem todos que possuem estas características são aprovados nos exames. Mas isto por enquanto é indiferente, porque estudaremos propriedades lógicas de todos os discursos, sejam eles verdadeiros ou falsos. Quando classificarmos um argumento dedutivo como válido, isto é, coerente, não significa que a conclusão dele seja verdadeira. Por exemplo, imagine que alguém queira lhe convencer da seguinte tese: os professores mais velhos da escola pública devem ser demitidos, usando a seguinte argumentação: “(1) O Brasil precisa de cidadãos inovadores, (2) os professores desatualizados não sabem formar cidadãos inovadores, (3) somente professores jovens conseguem se atualizar, portanto, (4) é necessário demitir os professores mais velhos”. Como se vê, a conclusão (4) é falsa, todavia, se você aceitasse todas as razões (1, 2 e 3), neste caso, por coerência, você seria obrigado pela coerência a aceitar a conclusão para não se contradizer. Portanto o argumento acima é válido mesmo com uma das razões e a conclusão falsas. Verdadeiro ou falso é uma classificação que atribuímos ao conteúdo das frases, não aos argumentos, pois os argumentos são uma forma de ligar as frases. Não precisamos saber que conteúdo real a frase representa para classificar o argumento de que ela faz parte. Por exemplo: “Já que (1) todo minhoto é castiço e (2) nenhum castiço é lúbrico, portanto (3) nenhum minhoto é castiço”. Não é preciso saber o que querem dizer tais palavras para verificar que ele é válido. Isto pode ser confirmado se você substituir os termos sublinhados por abreviações: (1) Todo M é C, (2) Nenhum C é L, (3) Nenhum M é C. Imagine que as letras representam conjuntos que se incluem (caso de 1) e se excluem (caso de 2).
Exercícios. Nos argumentos a seguir as premissas (razões) estão escritas, mas suas conclusões estão ocultas. Você deve descobri-las.
“Já que todos os encarregados são arrivistas e sabendo que Paulo é encarregado, segue-se que...”
“Visto que alguns religiosos são hindus e todo hindu sabe meditar, conclui-se que alguns...”
“Como nenhum dogmático é crítico e dado que alguns filósofos são dogmáticos, conseqüentemente...”
“Posto que nenhum badulá é arfemeu e admitindo que todos queboti são badulás, por conseguinte...”

Para descobrir as conclusões, você precisou deduzi-las das premissas. Abaixo vemos algumas deduções falaciosas, ou seja, argumentos dedutivos inválidos, mas que aparentam enganosamente ser válidos. Você consegue dizer por que eles não são válidos.
(Lembrete: não é porque a conclusão ou a premissa é falsa que o argumento é inválido)
“Todas ditaduras tomam decisões secretas, assim como toda ditadura emprega a violência, portanto toda decisão secreta é violenta”
“Todo político é ladrão, porque todo ladrão é oportunista e sabe-se que todo político é oportunista”
“Onde há poder há corrupção, e todos sabem que os bedéis são corruptos, por conseguinte todos bedéis têm poder”
“Todo cético é hermeneuta, pois todo hermeneuta é empirista e todo cético é empirista”

Quando debatemos um assunto no dia-a-dia, é mais difícil identificarmos as conclusões e as premissas como nos exemplos acima, isto costuma gerar alguns mal-entendidos e algumas “conversas de surdos”, quando as pessoas discutem sem ter definido claramente qual é a idéia polêmica, isto é, aquela que deve ser testada e justificada. Um primeiro passo para evitar estes obstáculos é seguir algumas pistas que a nossa língua oferece. Na maioria das vezes, premissas e conclusões são precedidas por indicadores:
Indicadores de premissas: “Uma vez que...”, “Já que...”, “pois...”, “porque...”, “dado que...”, “como foi dito...”, “visto que...”, “devido a...”, “a razão é que...”, “admitindo que...”,” sabendo-se que...”, “assumindo que...”
Indicadores de conclusão: “pode-se inferir que...”, “conseqüentemente...”, “assim...”, “o que prova que...”, “demonstra que...”, “por isso...”, “por conseguinte...”, “implica que...”, “pode-se inferir que...”, “logo...”, “portanto...”, “então...”, “daí que...”, “segue-se que...”, “dessa forma....”

Estes indicadores são pistas, não regras. Devem ser usados com cautela, pois não basta encontrar um indicador para termos um argumento. Por exemplo: “Eu fiquei resfriado devido à chuva e então fiquei o fim de semana em casa”. O autor da frase nos conta uma história, ele não está justificando uma tese ou conclusão. Exercitemos: Das frases abaixo, quais são argumentos?
“Existem pessoas que são a favor do aborto, outras que o consideram um crime e outras que fiam em dúvida”
“Visto que atendeste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses, então maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida.”
“Eu acho que a bicicleta é o melhor meio de transporte, desde a infância eu só ando de bicicleta”

O próximo passo é o estudo dos entimemas, que são argumentos com premissas implícitas (ou seja, ocultas). Exemplo 1: “(a) Nenhuma pessoa verdadeiramente religiosa é vaidosa; por conseguinte (b) Marta não deveria freqüentar a igreja”. Para esta conclusão (b) ser inevitável, precisamos aceitar a premissa (a) e mais duas, ocultas, que estão nas entrelinhas: “Marta é vaidosa” e “para ir a igreja a pessoa deve ser verdadeiramente religiosa”. Nem sempre manifestamos todas as bases de nossas idéias, às vezes porque as consideramos óbvias, como no caso a seguir: “Os publicitários das campanhas políticas não se comprometem com os partidos, pois eles são profissionais que priorizam a melhor oferta econômica”. A idéia que está oculta é: “Quem coloca em primeiro lugar o dinheiro não consegue se comprometer com apenas um partido”. Às vezes, no entanto, a pessoa oculta voluntariamente a sua premissa por saber que isto torna seu argumento menos frágil, por exemplo: “(a) Todos os fiscais são impiedosos, porque (b) neste cargo se obtém muito poder”. A premissa oculta neste caso é: “(c) Quem tem poder não tem piedade”. Só aceitará a conclusão (a) quem aceitar a premissa oculta (c). Mas nós podemos questioná-la dando exemplos de pessoas que têm poder e piedade simultaneamente. Você é capaz?
Exercício. Desoculte a premissa implícita e tente refutá-la, isto é, provar que ela está errada.
“Visto que os punks vivem criticando à sociedade, conclui-se que eles são ressentidos”
“Os solitários possuem medos secretos, uma vez que eles vivem deprimidos”
“Visto que anjos e bichos não têm consciência da morte, infere-se que eles não sofrem com a angústia”
“Se você quer ser sempre amada, compre Belezux e pareça sempre jovem”

O futuro de uma ilusão - ética e falácias




A charge acima, de autoria do argentino Quino, ilustra tanto o processo pelo qual juízos de fato se confundem com juízos de valor, quanto o uso de uma falácia que afirma princípios morais (dever ser) como se eles fossem inevitáveis (a realidade, aquilo que é).

Guia de falácias

Atendendo a pedidos, eis o link para quem estiver interessado em aprofundar o estudo das falácias e ajudar na infinita tarefa de desarmá-las. http://criticanarede.com/falacias.htm

segunda-feira, 9 de março de 2009

Sobre os seminários

Acabo de postar os textos que serão a base dos seminários (ou análises por escrito) que os alunos do ensino médio do EE Fernão Dias deverão realizar neste primeiro bimestre. Recomendo que todos, mesmo os que apresentarão seus seminários somente no fim de abril, iniciem desde já a leitura e aproveitem para postar aqui as suas dúvidas. Conforme elas forem aparecendo, eu indicarei fontes suplementares de apoio.

Marx - Seminário 5

As premissas das quais partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são as bases reais das quais só podemos fazer abstração na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições de existência materiais, aquelas que eles encontraram prontas, como também as que nascem de sua própria ação. Essas bases são, portanto, verificáveis por via puramente empírica.
A condição primeira de toda história humana é naturalmente a existência de seres humanos vivendo .O primeiro estado de fato a constatar é, portanto a complexão corporal desses indivíduos e as relações que ela estabelece com o resto da natureza. Não podemos, naturalmente, fazer aqui um estudo aprofundado da constituição física do homem, nem das condições naturais que os homens encontram prontas, condições geológicas, orográficas, hidrográficas, climáticas e outras. Toda a história deve partir dessas bases naturais e de suas modificações pela ação dos homens no curso da história.
Podem-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião e por tudo aquilo que se queira. Eles próprios começam a se distinguir dos animais desde que começam a produzir seus meios de existência, passo que é a conseqüência própria de sua organização corporal. Produzindo seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material.
A maneira pela qual os homens produzem seus meios de existência depende inicialmente da natureza, dos meios de existência já dados e dos que é preciso produzir. Não se deve considerar esse modo de produção de um único ponto de vista, a saber, que ele é a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele representa, ao contrário, já um modo determinado da atividade desses indivíduos, uma maneira determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. A maneira pela qual os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, portanto com sua produção, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira pela qual o produzem. O que os indivíduos são depende então das condições materiais de sua produção.
Esta produção só aparece com o crescimento de população. Ela própria pressupõe por sua vez relações dos indivíduos entre eles. A forma dessas relações é por sua vez condicionada pela produção.
As relações das diferentes nações entre si dependem do estado de desenvolvimento em que se encontram cada uma delas no que concerne às forças produtivas, à divisão do trabalho e às relações interiores.
(...)
Os diversos estados de desenvolvimento da divisão do trabalho representam outras tantas formas diferentes da propriedade; dito de outra forma, cada novo estado da divisão do trabalho determina igualmente as relações dos indivíduos entre eles para o que está relacionado à matéria, instrumentos e produtos do trabalho.
(...)
Eis, portanto os fatos: indivíduos determinados que têm uma atividade produtiva segundo um modo determinado, entram em relações sociais e políticas determinadas. É preciso que, em cada caso particular, a observação empírica mostre nos fatos, e sem nenhuma especulação nem mistificação, a ligação entre a estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado resultam constantemente do processo vital dos indivíduos determinados; mas esses indivíduos de modo algum tal como possam aparecer em sua própria representação ou aparecer na de outro, mas tal como são realmente, isto é, tal como eles trabalham e produzem materialmente; portanto tal como agem sobre bases e em condições e limites materiais determinados e independentes de sua vontade.
(...)
A produção de idéias, de representações, da consciência, está, de em primeiro lugar, diretamente entrelaçada com a atividade material dos homens, e aparecem como emanação direta dela. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc de um povo. Os homens são produtores de suas representações, de suas idéias etc, mas os homens reais e ativos, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde até chegar às suas formações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre do seu processo histórico de vida, do mesmo modo por que a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico.
(...)
Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.
(...)
Com os Alemães que se julgam desprovidos de qualquer pressuposto, nos força começar pela constatação da pressuposição primeira de toda existência humana, partindo de toda história, a saber, que os homens devem estar vivos para poder “fazer a história”. Mas, para viver, é preciso antes de tudo beber, comer, se abrigar, se vestir e algumas outras coisas ainda. O primeiro fato histórico é, portanto a produção dos meios que permitam satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material, e é nisso mesmo um fato histórico, uma condição fundamental de toda história que se deve, hoje ainda como há milhares de anos, preencher dia por dia, hora por hora, simplesmente para manter os homens vivos. (...).
Uma vez a primeira necessidade satisfeita, a ação de satisfazê-la e o instrumento já adquirido dessa satisfação colocam nossas necessidades, - e este produção de novas necessidades é o primeiro fato histórico.

MARX, Karl. A Ideologia Alemã.

Rousseau – Seminário 4

Deixando de lado, pois, todos os livros científicos, que só nos ensinam a ver os homens como eles se fizeram [pela sociedade], e meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana, creio nela perceber dois princípios anteriores à razão, um dos quais interessa profundamente ao nosso bem-estar e à nossa conservação [amor de si], e o outro nos inspira uma repugnância natural por ver parecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes [piedade natural]. Do concurso e da combinação que nosso espírito seja capaz de fazer desses dois princípios, sem que seja necessário nele imiscuir o da sociabilidade, parece-me decorrer todas as regras do direito natural, regras essas que a razão, depois, é forçada a restabelecer com outros fundamentos quando, por seus desenvolvimentos sucessivos, chega a ponto de sufocar a [sua própria] natureza.
Desse modo, não se é mais obrigado a fazer do homem um filósofo em lugar de fazê-lo um homem: seus deveres para com outrem não lhe são unicamente ditados pelas lições tardias da sabedoria e, enquanto não resistir ao impulso interior natural de comiseração, jamais fará qualquer mal a um outro homem, nem mesmo a um ser sensível, exceto no caso legítimo em que, encontrando-se em jogo sua conservação, é obrigado a dar preferência a si mesmo.
(...)
Considerando-o tal como deve ter saído das mãos da natureza, vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, em conjunto, organizado de modo mais vantajoso do que todos os demais. Vejo-o fartando-se sob um carvalho, refrigerando-se no primeiro riacho, encontrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto e, assim, satisfazendo a todas as suas necessidades.
(...)
Habituados, desde a infância, às intempéries da atmosfera e ao rigor das estações, experimentados na fadiga e forçados a defender, nus e sem armas, a vida e a prole contras as outras bestas ferozes ou a elas escapar correndo, os homens adquirem um temperamento robusto e quase inalterável; os filhos, trazendo para o mundo a excelente constituição de seus pais e fortificando-se pelas mesmas atividades que a produziram, adquirem, desse modo, todo o vigor de que a espécie humana é capaz. (...).
(...) [Há] indícios de que a maioria de nossos males é obra nossa e que teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza. Se ela nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é uma animal depravado.(...).
Com tão poucas fontes de males, o homem, no estado de natureza, não sente, pois, necessidade de remédios e, menos ainda, de médicos; a espécie humana não está, pois, a esse respeito, em condições piores do que todas as outras (...).
Não constituem, pois, para esses primeiros homens, nem tão grande mal, nem sobretudo, tão grande obstáculo à sua conservação, a nudez, a falta de moradia e a privação de todas as inutilidades que consideramos tão necessárias.(...) Finalmente, a menos que se suponha esses singulares e fortuitos concursos de circunstâncias dos quais falarei em seguida e que poderiam muito bem jamais ter acontecido, é claro e sem contestação possível que o primeiro a arranjar vestes e uma habitação ofereceu a si mesmo, desse modo, coisas pouco necessárias, pois tinha passado até então sem elas e também por não se poder imaginar como não poderia ele suportar, feito homem, um gênero de vida em que vivia desde a infância.
Só, desocupado e sempre próximo do perigo, o homem selvagem deve gostar de dormir e ter o sono leve, como os animais que, pensando pouco, dormem, por assim dizer, todo o tempo em que não estão pensando. Constituindo a própria conservação quase a única preocupação, as faculdades mais exercitadas deverão ser aquelas cujo objetivo principal seja o ataque e a defesa, quer para subjugar a presa, quer para defender-se de tornar-se a de um outro animal (...).
Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto de tudo quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de liberdade, o que faz com que o animal não possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem dela se afaste freqüentemente em seu prejuízo. É assim que um pombo morre de fome perto de uma vasilha cheia das melhores carnes, e um gato sobre uma porção de frutas ou de grãos, embora ambos pudessem nutrir-se com os alimentos que desdenham, se procurassem experimentá-lo; é assim que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes ocasionam a febre e a morte, porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala.
Todo animal tem idéias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas idéias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade. (...) Não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção específica daquele. A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma (...).
Mas, ainda quanto as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem por um instante de causar discussão sobre a diferença entre o homem e o animal, haveria uma outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo. Tristes de nós se fossemos forçados a convir que essa faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todas as desgraças do homem; que é ela que o tira à força de tempo dessa condição originária na qual ele passaria dias tranqüilos e inocentes: que é ela que, fazendo desabrochar com os séculos suas luzes e seus erros, seus vícios e suas virtudes, o torna, com o tempo, o tirano de si mesmo e da natureza.
Os únicos bens que [o homem em estado de natureza] conhece no universo são a alimentação, uma fêmea e repouso; os únicos males que teme, a dor e a fome. (...)
Mas, sem recorrer aos testemunhos incertos da história, quem não verá que tudo parece afastar do homem selvagem a tentação e os meios de deixar de ser selvagem? Sua imaginação nada lhe descreve, o coração nada lhe pede. Suas módicas necessidades encontram-se com tanta facilidade ao alcance da mão e encontra-se ele tão longe do grau de conhecimento necessário para desejar alcançar outras maiores que não pode ter previdência, nem curiosidade. O espetáculo da natureza, por muito familiar, torna-se-lhe indiferente (...); não possui espírito para espantar-se com as maiores maravilhas e não é nele que se deve procurar a filosofia de que o homem tem necessidade para saber observar por uma vez o que sempre viu. Sua alma, que por nada é agitada, entrega-se unicamente ao sentimento da existência atual sem qualquer idéia de futuro, ainda que próximo, e seus projetos, limitados como suas vistas, dificilmente se estendem até o fim do dia.
(...) Vê-se o pouco cuidado que teve a natureza ao reunir os homens por meio de necessidades mútuas e ao facilitar-lhes o uso da palavra, como preparou mal sua sociabilidade e como pôs pouco de si mesma em tudo que fizeram para estabelecer seus laços. Com efeito, é impossível imaginar por que, nesse estado primitivo, o homem sentiria mais necessidade de um outro homem do que um macaco ou lobo de seu semelhante; ou ainda – uma vez supondo-se essa necessidade -, qual o motivo que poderia levar o outro a atendê-lo; ou, finalmente, neste último caso, como poderiam estabelecer condições entre si. Sei que incessantemente nos repetem que nada teria sido tão miserável quanto o homem neste estado; e, se é verdade, como creio tê-lo provado, que só depois de muitos séculos poderia sentir ele o desejo e a oportunidade de sair dessa condição, tal acusação fora de fazer-se à natureza e não àquele assim constituído por ela.
(...)
Concluamos que, errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligação, sem qualquer necessidade de seus semelhantes, bem como sem qualquer desejo de prejudicá-los, talvez sem sequer reconhecer alguns deles individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual só sentia suas verdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos que sua vaidade. Se por acaso descobria alguma coisa, era tanto mais incapaz de comunicá-la quanto nem mesmo reconhecia os próprios filhos. A arte perecia com o inventor. Então não havia nem educação, nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a espécie já era velha e o homem continuava sempre criança.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens.

John Locke – Seminário 3

O estado em que todos os homens naturalmente estão é um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de sua posses e pessoas do modo que julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem.
Um estado também de igualdade, em que é recíproco todo poder e jurisdição, não tendo ninguém mais que outro qualquer – sendo absolutamente evidente que criaturas da mesma espécie e posição, promiscuamente nascidas para as mesmas vantagens da natureza e para o uso das mesmas faculdades, devam ser também iguais umas às outras, sem subordinação ou sujeição, a menos que o Senhor e amo de todas elas, mediante qualquer declaração manifesta de Sua vontade, colocasse uma acima de outra e lhe conferisse, por evidente e clara indicação, um direito indubitável ao domínio e à soberania.
Mas, embora seja este um estado de liberdade, não o é de licenciosidade; embora o homem neste estado tenha uma liberdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou posses, não tem liberdade para destruir-se ou a qualquer criatura em sua posse, a menos que um uso mais nobre do que a mera conservação desta o exija. O estado de natureza tem para governá-lo uma lei de natureza, que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posses. Pois sendo todos os homens artefato de um mesmo Criador onipotente e infinitamente sábio, todos eles servidores de um Senhor soberano e único, enviados por Sua ordem e para cumprir Seus desígnios, são propriedade de Seu artífice, feitos para durar enquanto a Ele aprouver, e não a outrem. (...) Cada um está obrigado a preservar-se, e não abandonar sua posição por vontade própria; logo, pela mesma razão, quando sua própria preservação não estiver em jogo, cada um deve, tanto quanto puder, preservar o resto da humanidade, e não pode, a não ser que seja para fazer justiça a um infrator, tirar ou prejudicar a vida ou o que favorece a preservação da vida, liberdade, saúde, integridade ou bens de outrem.
E para que todos os homens sejam impedidos de invadir direitos alheios e de prejudicar uns aos outros, e para que seja observada a lei da natureza, que quer a paz e a conservação de toda humanidade, a responsabilidade pela execução da lei da natureza é, nesse estado, depositada nas mãos de cada homem, pelo que cada um tem o direito de punir os transgressores da dita lei em tal grau que impeça sua violação. Pois a lei da natureza seria vã, como todas as demais leis que dizem respeito ao homem neste mundo, se não houvesse alguém que tivesse, no estado de natureza, um poder para executar essa lei e, como isso, preservar os inocentes e conter os transgressores. E se qualquer um no estado de natureza pode punir a outrem, por qualquer mal que tenha cometido, todos o podem fazer, pois nesse estado de perfeita igualdade, no qual naturalmente não existe superioridade ou jurisdição de um sobre o outro, aquilo que qualquer um pode fazer em prossecução dessa lei todos devem necessariamente ter o direito de fazer.
(...)
Eis aí a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra, os quais, por mais que alguns homens tenham confundido, tão distantes estão um do outro quanto um estado de paz, boa vontade, assistência mútua e preservação está de um estado de inimizade, malignidade, violência e destruição mútua. Quando homens vivem juntos segundo a razão e sem um ser superior comum sobre a Terra com autoridade para julgar entre eles, manifesta-se propriamente o estado de natureza. Mas a força, ou um propósito declarado de força sobre a pessoa de outrem, quando não haja superior comum sobre a Terra ao qual apelar em busca de assistência, constitui o estado de guerra. E é a falta de tal apelo que dá ao homem o direito de guerra até contra um agressor; mesmo estando este em sociedade e sendo igualmente súdito. (...) A ausência de um juiz comum dotado de autoridade coloca todos os homens em estado de natureza; a força sem direito sobre a pessoa de um homem causa o estado de guerra, havendo ou não um juiz comum.
(...)
Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão, a fim de que dela fizessem uso para maior benefício e conveniência da vida. A Terra, e tudo quanto nela há, é dada aos homens para o sustento e o conforto de sua existência. E embora todos os frutos que ele naturalmente produz e os animais que alimenta pertençam à humanidade em comum, produzidos que são pela mão espontânea da natureza, e ninguém tenha originalmente um domínio particular sobre eles à exclusão de todo o resto da humanidade, por assim estarem todos em seu estado natural, é, contudo, necessário, por terem sido essas coisas dadas para o uso dos homens, haver um meio de apropriar parte delas de um modo ou de outro para que possam ser de alguma utilidade ou benefício para qualquer homem em particular. O fruto ou a caça que alimente o índio selvagem, que desconhece o que seja um lote e é ainda possuidor comum, deve ser dele, e de tal modo dele que outro não tenha direito algum a tais alimentos, para que lhe possam ser de qualquer utilidade no sustento de sua vida.
Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode-se dizer, são propriamente seus. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o de estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o exclui do direito comum dos outros homens. Desde que esse ‘trabalho’ é propriedade indiscutível do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao que foi por ele incorporado, pelo menos quando houver bastante e igualmente de boa qualidade em comum para terceiros.

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo.