segunda-feira, 9 de março de 2009

John Locke – Seminário 3

O estado em que todos os homens naturalmente estão é um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de sua posses e pessoas do modo que julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem.
Um estado também de igualdade, em que é recíproco todo poder e jurisdição, não tendo ninguém mais que outro qualquer – sendo absolutamente evidente que criaturas da mesma espécie e posição, promiscuamente nascidas para as mesmas vantagens da natureza e para o uso das mesmas faculdades, devam ser também iguais umas às outras, sem subordinação ou sujeição, a menos que o Senhor e amo de todas elas, mediante qualquer declaração manifesta de Sua vontade, colocasse uma acima de outra e lhe conferisse, por evidente e clara indicação, um direito indubitável ao domínio e à soberania.
Mas, embora seja este um estado de liberdade, não o é de licenciosidade; embora o homem neste estado tenha uma liberdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou posses, não tem liberdade para destruir-se ou a qualquer criatura em sua posse, a menos que um uso mais nobre do que a mera conservação desta o exija. O estado de natureza tem para governá-lo uma lei de natureza, que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posses. Pois sendo todos os homens artefato de um mesmo Criador onipotente e infinitamente sábio, todos eles servidores de um Senhor soberano e único, enviados por Sua ordem e para cumprir Seus desígnios, são propriedade de Seu artífice, feitos para durar enquanto a Ele aprouver, e não a outrem. (...) Cada um está obrigado a preservar-se, e não abandonar sua posição por vontade própria; logo, pela mesma razão, quando sua própria preservação não estiver em jogo, cada um deve, tanto quanto puder, preservar o resto da humanidade, e não pode, a não ser que seja para fazer justiça a um infrator, tirar ou prejudicar a vida ou o que favorece a preservação da vida, liberdade, saúde, integridade ou bens de outrem.
E para que todos os homens sejam impedidos de invadir direitos alheios e de prejudicar uns aos outros, e para que seja observada a lei da natureza, que quer a paz e a conservação de toda humanidade, a responsabilidade pela execução da lei da natureza é, nesse estado, depositada nas mãos de cada homem, pelo que cada um tem o direito de punir os transgressores da dita lei em tal grau que impeça sua violação. Pois a lei da natureza seria vã, como todas as demais leis que dizem respeito ao homem neste mundo, se não houvesse alguém que tivesse, no estado de natureza, um poder para executar essa lei e, como isso, preservar os inocentes e conter os transgressores. E se qualquer um no estado de natureza pode punir a outrem, por qualquer mal que tenha cometido, todos o podem fazer, pois nesse estado de perfeita igualdade, no qual naturalmente não existe superioridade ou jurisdição de um sobre o outro, aquilo que qualquer um pode fazer em prossecução dessa lei todos devem necessariamente ter o direito de fazer.
(...)
Eis aí a clara diferença entre o estado de natureza e o estado de guerra, os quais, por mais que alguns homens tenham confundido, tão distantes estão um do outro quanto um estado de paz, boa vontade, assistência mútua e preservação está de um estado de inimizade, malignidade, violência e destruição mútua. Quando homens vivem juntos segundo a razão e sem um ser superior comum sobre a Terra com autoridade para julgar entre eles, manifesta-se propriamente o estado de natureza. Mas a força, ou um propósito declarado de força sobre a pessoa de outrem, quando não haja superior comum sobre a Terra ao qual apelar em busca de assistência, constitui o estado de guerra. E é a falta de tal apelo que dá ao homem o direito de guerra até contra um agressor; mesmo estando este em sociedade e sendo igualmente súdito. (...) A ausência de um juiz comum dotado de autoridade coloca todos os homens em estado de natureza; a força sem direito sobre a pessoa de um homem causa o estado de guerra, havendo ou não um juiz comum.
(...)
Deus, que deu o mundo aos homens em comum, deu-lhes também a razão, a fim de que dela fizessem uso para maior benefício e conveniência da vida. A Terra, e tudo quanto nela há, é dada aos homens para o sustento e o conforto de sua existência. E embora todos os frutos que ele naturalmente produz e os animais que alimenta pertençam à humanidade em comum, produzidos que são pela mão espontânea da natureza, e ninguém tenha originalmente um domínio particular sobre eles à exclusão de todo o resto da humanidade, por assim estarem todos em seu estado natural, é, contudo, necessário, por terem sido essas coisas dadas para o uso dos homens, haver um meio de apropriar parte delas de um modo ou de outro para que possam ser de alguma utilidade ou benefício para qualquer homem em particular. O fruto ou a caça que alimente o índio selvagem, que desconhece o que seja um lote e é ainda possuidor comum, deve ser dele, e de tal modo dele que outro não tenha direito algum a tais alimentos, para que lhe possam ser de qualquer utilidade no sustento de sua vida.
Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode-se dizer, são propriamente seus. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual o deixou, fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence e, por isso mesmo, tornando-o propriedade dele. Retirando-o de estado comum em que a natureza o colocou, anexou-lhe por esse trabalho algo que o exclui do direito comum dos outros homens. Desde que esse ‘trabalho’ é propriedade indiscutível do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao que foi por ele incorporado, pelo menos quando houver bastante e igualmente de boa qualidade em comum para terceiros.

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo.

Nenhum comentário: