Não é à toa que os gregos, o povo que inventou a filosofia há 2.500 anos, tenha, na mesma época, criado a democracia, pois entre ambas existe grande afinidade. A filosofia dificilmente sobrevive em ambientes autoritários, onde não existe liberdade de pensamento. O controle do pensamento é a primeira coisa que todo o ditador, religioso ou político, procura impor. Os filósofos da Grécia antiga expunham as suas idéias e desafiavam os seus interlocutores a discuti-las livremente. Esta atitude, de que o filósofo Sócrates é o melhor exemplo, não tem nada de arrogante, porque é a atitude “humilde” de quem busca a verdade, reconhecendo as limitações que nosso conhecimento possui, e sabendo que a melhor maneira de superá-las é diminuir as chances de erros, submetendo nossas idéias à discussão pública. O objetivo neste caso não é “ganhar” o debate, mas sim verificar se nossas idéias são boas de fato, ou se possuem fraquezas que só conseguimos perceber com a ajuda e a crítica dos outros. Quando o debate nos faz perceber e admitir que uma idéia que defendemos não corresponde à realidade, não perdemos nada, pelo contrário, pois superamos a vaidade e a ilusão e demos mais um passo rumo à verdade.
No entanto, nem todos os gregos viam o debate como um caminho para se encontrar a verdade. A maioria dos gregos discutia com outra preocupação: como fazer os outros aceitarem minha opinião (seja ela comprovada ou não), como torná-la aparentemente melhor, ou seja, como convencer e persuadir? Em uma democracia direta – em que, ao contrário da atual democracia representativa, todos os cidadãos participavam pessoalmente do governo da cidade –, como era a grega na antiguidade, esta habilidade é considerada uma virtude. Quem domina a arte da palavra tem o poder de orientar a ação dos outros cidadãos e os destinos da cidade. Esta virtude pode ser aprendida e ensinada. Certos professores de retórica chegavam a cobrar pelo ensino das técnicas da persuasão, eram eles conhecidos como sofistas. Os filósofos, que estavam mais preocupados em evitar os erros na busca da verdade, criticaram os sofistas por eles venderem o conhecimento de técnicas de manipulação através de argumentos.
Veremos que um argumento é uma forma de conectar idéias para defender ou justificar conclusões (ou teses). Quando alguém pretender convencê-lo de algo, você deve ser capaz de analisar se a pessoa usa argumentos e se eles são válidos. O objetivo deste módulo é reconhecer e dominar o funcionamento dos argumentos válidos e das falácias (argumentos que parecem válidos, mas não o são).
Quando, no dia-a-dia, dizemos que algo “É lógico!”, geralmente queremos dizer que uma idéia é obviamente correta, ou que temos informações suficientes para concluir que sim. Por exemplo: _ “Você acha que Fulano vai passar na prova?” _ “É lógico que ele vai.” Podemos dizer que por trás desta segunda frase, existem outras, que formam um raciocínio e a sustentam: “(1) Ele vai passar na prova, pois (2) ele é inteligente e (3) se preparou para a prova, e (4) todos que possuem estas condições são aprovados”. Este raciocínio é um argumento, ou seja, um conjunto de afirmações relacionadas e organizadas de um modo em que uma delas (a conclusão) é sustentada, ou melhor, justificada pelas outras (as premissas). O exemplo é também um argumento válido, isto ocorre quando uma conclusão (1) é a conseqüência inevitável das suas razões (as premissas: 2, 3 e 4), quando ela é deduzida coerentemente das premissas 1 (nota:nem todo argumento é dedutivo) . Talvez você discorde do exemplo e diga que nem todos que possuem estas características são aprovados nos exames. Mas isto por enquanto é indiferente, porque estudaremos propriedades lógicas de todos os discursos, sejam eles verdadeiros ou falsos. Quando classificarmos um argumento dedutivo como válido, isto é, coerente, não significa que a conclusão dele seja verdadeira. Por exemplo, imagine que alguém queira lhe convencer da seguinte tese: os professores mais velhos da escola pública devem ser demitidos, usando a seguinte argumentação: “(1) O Brasil precisa de cidadãos inovadores, (2) os professores desatualizados não sabem formar cidadãos inovadores, (3) somente professores jovens conseguem se atualizar, portanto, (4) é necessário demitir os professores mais velhos”. Como se vê, a conclusão (4) é falsa, todavia, se você aceitasse todas as razões (1, 2 e 3), neste caso, por coerência, você seria obrigado pela coerência a aceitar a conclusão para não se contradizer. Portanto o argumento acima é válido mesmo com uma das razões e a conclusão falsas. Verdadeiro ou falso é uma classificação que atribuímos ao conteúdo das frases, não aos argumentos, pois os argumentos são uma forma de ligar as frases. Não precisamos saber que conteúdo real a frase representa para classificar o argumento de que ela faz parte. Por exemplo: “Já que (1) todo minhoto é castiço e (2) nenhum castiço é lúbrico, portanto (3) nenhum minhoto é castiço”. Não é preciso saber o que querem dizer tais palavras para verificar que ele é válido. Isto pode ser confirmado se você substituir os termos sublinhados por abreviações: (1) Todo M é C, (2) Nenhum C é L, (3) Nenhum M é C. Imagine que as letras representam conjuntos que se incluem (caso de 1) e se excluem (caso de 2).
Exercícios. Nos argumentos a seguir as premissas (razões) estão escritas, mas suas conclusões estão ocultas. Você deve descobri-las.
“Já que todos os encarregados são arrivistas e sabendo que Paulo é encarregado, segue-se que...”
“Visto que alguns religiosos são hindus e todo hindu sabe meditar, conclui-se que alguns...”
“Como nenhum dogmático é crítico e dado que alguns filósofos são dogmáticos, conseqüentemente...”
“Posto que nenhum badulá é arfemeu e admitindo que todos queboti são badulás, por conseguinte...”
Para descobrir as conclusões, você precisou deduzi-las das premissas. Abaixo vemos algumas deduções falaciosas, ou seja, argumentos dedutivos inválidos, mas que aparentam enganosamente ser válidos. Você consegue dizer por que eles não são válidos.
(Lembrete: não é porque a conclusão ou a premissa é falsa que o argumento é inválido)
“Todas ditaduras tomam decisões secretas, assim como toda ditadura emprega a violência, portanto toda decisão secreta é violenta”
“Todo político é ladrão, porque todo ladrão é oportunista e sabe-se que todo político é oportunista”
“Onde há poder há corrupção, e todos sabem que os bedéis são corruptos, por conseguinte todos bedéis têm poder”
“Todo cético é hermeneuta, pois todo hermeneuta é empirista e todo cético é empirista”
Quando debatemos um assunto no dia-a-dia, é mais difícil identificarmos as conclusões e as premissas como nos exemplos acima, isto costuma gerar alguns mal-entendidos e algumas “conversas de surdos”, quando as pessoas discutem sem ter definido claramente qual é a idéia polêmica, isto é, aquela que deve ser testada e justificada. Um primeiro passo para evitar estes obstáculos é seguir algumas pistas que a nossa língua oferece. Na maioria das vezes, premissas e conclusões são precedidas por indicadores:
Indicadores de premissas: “Uma vez que...”, “Já que...”, “pois...”, “porque...”, “dado que...”, “como foi dito...”, “visto que...”, “devido a...”, “a razão é que...”, “admitindo que...”,” sabendo-se que...”, “assumindo que...”
Indicadores de conclusão: “pode-se inferir que...”, “conseqüentemente...”, “assim...”, “o que prova que...”, “demonstra que...”, “por isso...”, “por conseguinte...”, “implica que...”, “pode-se inferir que...”, “logo...”, “portanto...”, “então...”, “daí que...”, “segue-se que...”, “dessa forma....”
Estes indicadores são pistas, não regras. Devem ser usados com cautela, pois não basta encontrar um indicador para termos um argumento. Por exemplo: “Eu fiquei resfriado devido à chuva e então fiquei o fim de semana em casa”. O autor da frase nos conta uma história, ele não está justificando uma tese ou conclusão. Exercitemos: Das frases abaixo, quais são argumentos?
“Existem pessoas que são a favor do aborto, outras que o consideram um crime e outras que fiam em dúvida”
“Visto que atendeste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses, então maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida.”
“Eu acho que a bicicleta é o melhor meio de transporte, desde a infância eu só ando de bicicleta”
O próximo passo é o estudo dos entimemas, que são argumentos com premissas implícitas (ou seja, ocultas). Exemplo 1: “(a) Nenhuma pessoa verdadeiramente religiosa é vaidosa; por conseguinte (b) Marta não deveria freqüentar a igreja”. Para esta conclusão (b) ser inevitável, precisamos aceitar a premissa (a) e mais duas, ocultas, que estão nas entrelinhas: “Marta é vaidosa” e “para ir a igreja a pessoa deve ser verdadeiramente religiosa”. Nem sempre manifestamos todas as bases de nossas idéias, às vezes porque as consideramos óbvias, como no caso a seguir: “Os publicitários das campanhas políticas não se comprometem com os partidos, pois eles são profissionais que priorizam a melhor oferta econômica”. A idéia que está oculta é: “Quem coloca em primeiro lugar o dinheiro não consegue se comprometer com apenas um partido”. Às vezes, no entanto, a pessoa oculta voluntariamente a sua premissa por saber que isto torna seu argumento menos frágil, por exemplo: “(a) Todos os fiscais são impiedosos, porque (b) neste cargo se obtém muito poder”. A premissa oculta neste caso é: “(c) Quem tem poder não tem piedade”. Só aceitará a conclusão (a) quem aceitar a premissa oculta (c). Mas nós podemos questioná-la dando exemplos de pessoas que têm poder e piedade simultaneamente. Você é capaz?
Exercício. Desoculte a premissa implícita e tente refutá-la, isto é, provar que ela está errada.
“Visto que os punks vivem criticando à sociedade, conclui-se que eles são ressentidos”
“Os solitários possuem medos secretos, uma vez que eles vivem deprimidos”
“Visto que anjos e bichos não têm consciência da morte, infere-se que eles não sofrem com a angústia”
“Se você quer ser sempre amada, compre Belezux e pareça sempre jovem”
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