quarta-feira, 25 de março de 2009

Natureza Humana segundo Hobbes

«Hobbes pode facilmente recorrer à experiência quotidiana para provar a sua tese central sobre a conduta humana, que é, em poucas palavras, que todos somos egoístas e estamos dispostos a aproveitar-se dos outros em nosso próprio benefício. Hobbes se defende da acusação de pessimismo, dizendo que o comportamento cotidiano dos homens sustenta suas teses: Qual é a opinião que os homens têm do seu próximo quando está armado? Quando tranca as suas portas? Que opinião tem dos seus criados e dos seus filhos quando fecha a cadeados os seus cofres? Por outras palavras, o que fazemos diariamente demonstra que não confiamos uns nos outros, e sim pensamos que todos perseguem apenas seu interesse pessoal, inclusivamente à custa dos outros. Hobbes acredita que “num estado de natureza”, em que os homens são mais ou menos iguais e não estão limitados pelas leis de uma sociedade determinada, estes tentam sobreviver a qualquer preço. Como a sobrevivência é prioritária e os seus desejos naturais não podem considerar-se bons nem maus em si mesmos. A moral é, portanto, irrelevante neste estado. A “condição natural da humanidade” é aquela em que cada indivíduo choca com todos os outros, pois todos tentam alcançar a segurança. Hobbes utiliza duas analogias bastante gráficas. Na primeira fala da “guerra” de “todos contra todos”, uma luta permanente que se desencadearia se os homens não vivessem em segurança e tivessem que depender por completo dos seus próprios recursos. Não existiria então nenhuma das vantagens que oferece a sociedade: nem a indústria, nem a agricultura, nem a navegação, nem o conhecimento científico. Haveria um medo contínuo e a ameaça de morte violenta. A listagem das misérias que corresponde ao estado natural termina com a sua frase “a vida do homem” seria “solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”.Segundo Hobbes, é indiferente que as suas hipóteses acerca de uma natureza humana independente de constrangimentos sociais não possam ser comprovadas historicamente – embora cite o exemplo concreto de “selvagens de certos lugares da América” que não possuíam nenhuma espécie de governo. O que para ele não é indiferente é a idéia de que não pode haver sociedade sem governo e sem as ameaças da lei, pois neste caso haveria apenas indivíduos antagônicos entre si. Todavia, Hobbes não sugere em nenhum momento que o impulso de auto-proteção e de defesa do interesse pessoal seja mau. Nunca condena o egoísmo nem a indiferença para com os outros. Assim são os homens, diz, e todas as formas de organização social que ignorarem esse fato fracassarão. A razão para estabelecermos relações sociais deve ser precisamente que fazê-lo convém aos nossos próprios interesses. A teoria política de Hobbes tem a sua base mais firme na procura sistemática do benefício pessoal e racional.A segunda imagem de Hobbes é a que compara a vida humana a uma corrida, em que temos que supor que não há outro objetivo nem outro prêmio a não ser o de conseguir chegar em primeiro lugar. A competição – o desejo de superar o outro – é parte do enredo das nossas vidas: ou queremos alcançar algo à custa dos outros, ou queremos defender aquilo que já conquistamos. Também procuramos a glória e a honra para nós mesmos. Nessa corrida pode haver muita crueldade – “ver cair o outro produz grande alegria” – embora Hobbes reconheça que também possa haver compaixão e auxílio aos outros. Pode até ser que, por caridade, alguém afaste da corrida um rival. No entanto, o mais importante é o individualismo agressivo, alimentado pelo medo de que os outros nos privem do que queremos. Hobbes fala de um direito natural, que não é um direito à justiça, pelo contrário, cada homem “tem direito a tudo, incluindo dispor do corpo de outros”. O nosso direito natural básico é o de usar o mais possível as nossas capacidades para sobreviver. Nasce assim, na filosofia, uma concepção dos direitos totalmente distinta das que colocam no outro lado da balança os deveres e as obrigações. Se cada pessoa exigir que se reconheçam os seus interesses, mas não estiver disposta a considerar os dos outros, a sociedade terá forçosamente uma base instável. Nenhuma sociedade pode se manter nessas condições, por isso Hobbes aceitará que se construa um sentido do dever, embora ela não seja natural.Terá Hobbes razão quando parte do pressuposto de que só nos interessa o nosso benefício pessoal? Na realidade, não está claro até que ponto queria acentuar realmente esse egoísmo. Uma interpretação extrema é a do egoísmo psicológico, segundo o qual um indivíduo só pode querer o seu próprio bem. Quer dizer, se te ajudo é porque quero o meu bem-estar, não o teu. Provavelmente desejo a satisfação que resulta de ser generoso. Hobbes até admite que uma pessoa pode ajudar outra na corrida da vida, e que até no estado de natureza os homens podem ser generosos. Mas como demonstrar que motivação desta ação não ação interesses pessoais, egoístas.Hobbes descreve a caridade dizendo que “nada pode convencer mais a um homem do poder que tem do que sentir-se capaz não apenas de cumprir os seus desejos, mas também de ajudar os outros a cumprir os seus”. E completa ainda: a compaixão é “a imaginação, ao ver as calamidades alheias, de que vamos sofrer também nós no futuro”. É óbvio o caráter egocêntrico desta atitude: o interesse pelos outros é um subproduto do interesse por nós mesmos. Quer dizer, eu realmente não me preocupo contigo a não ser que a tua situação difícil desencadeie em mim uma reação de simpatia que tem a sua origem na minha preocupação comigo mesmo. De igual modo, ajudar-te provoca em mim uma sensação bastante agradável de poder. O problema lógico, no entanto, radica no fato de Hobbes poder realmente afirmar que os interesses dos outros me são completamente indiferentes, mesmo que sejam meios para outra coisa qualquer.
O Bispo Butler, um filósofo do século XVIII, ataca Hobbes neste ponto, defendendo que o mero desejo pelo poder não permite discernir entre objetivos, pois não quer o poder só por si, mas para utilizá-lo de algum modo concreto. Para exercer poder sobre ti, deve existir algo na tua situação que eu queira mudar. Se, por exemplo, quero aliviar a tua dor porque assim me sinto superior, pode ser que isto seja basicamente egoísta, mas o que eu quero é aliviar-te e não apenas sentir-me superior. Pode pensar-se até que Hobbes pudesse estar de acordo com Butler. Depois de tudo, a sua definição de compaixão não equivale simplesmente ao medo de alguma calamidade futura. Supõe que ao vermos a desgraça alheia imaginamos que algo semelhante nos pode acontecer. A simpatia está unida ao conhecimento do que seria sofrer isso mesmo na nossa própria carne. Embora haja aqui uma grande dose de egoísmo, não se infere que o objeto da minha emoção seja a minha calamidade imaginada e não a calamidade real de outrem. É possível que a minha preocupação com os outros seja imperfeita, mas em parte continuará a ser uma preocupação com os outros e não apenas comigo. Hobbes reconhece que pode existir “afeto natural” dos pais para com os filhos, e que podemos sentir afeto por outras pessoas próximas de nós. É mais cético relativamente à ajuda que prestamos a estranhos e sugere que o fim dessas ações é “comprar amizade” ou, possivelmente, mediante o medo, “comprar a paz”. Ainda assim fica a sugestão de que a indiferença para com os outros não é total e que pelo menos podemo-nos preocupar com algumas pessoas. Provavelmente não se pode acusar Hobbes de defender um egoísmo psicológico total, mas a sua maneira de se concentrar no indivíduo à margem das restrições da sociedade leva-o a colocar o interesse pessoal em primeiro lugar. É como se a preocupação com os outros, embora possível, nunca pudesse ser sincera, uma vez que estaria sempre ligada aos nossos interesses pessoais básicos. Hobbes acredita que a sociedade humana deve construir-se a partir deste feito. Como o nosso impulso mais forte é o da sobrevivência individual, a sociedade deve justificar-se sobre a base do que convém à nossa segurança.»
Trigg, Roger (2001). Concepciones de la Naturaleza Humana. Uma Introducción Histórica. Madrid: Alianza Editorial, pp. 84-92 (Traduzido e adaptado por Vítor João Oliveira)

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