Deixando de lado, pois, todos os livros científicos, que só nos ensinam a ver os homens como eles se fizeram [pela sociedade], e meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana, creio nela perceber dois princípios anteriores à razão, um dos quais interessa profundamente ao nosso bem-estar e à nossa conservação [amor de si], e o outro nos inspira uma repugnância natural por ver parecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes [piedade natural]. Do concurso e da combinação que nosso espírito seja capaz de fazer desses dois princípios, sem que seja necessário nele imiscuir o da sociabilidade, parece-me decorrer todas as regras do direito natural, regras essas que a razão, depois, é forçada a restabelecer com outros fundamentos quando, por seus desenvolvimentos sucessivos, chega a ponto de sufocar a [sua própria] natureza.
Desse modo, não se é mais obrigado a fazer do homem um filósofo em lugar de fazê-lo um homem: seus deveres para com outrem não lhe são unicamente ditados pelas lições tardias da sabedoria e, enquanto não resistir ao impulso interior natural de comiseração, jamais fará qualquer mal a um outro homem, nem mesmo a um ser sensível, exceto no caso legítimo em que, encontrando-se em jogo sua conservação, é obrigado a dar preferência a si mesmo.
(...)
Considerando-o tal como deve ter saído das mãos da natureza, vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, em conjunto, organizado de modo mais vantajoso do que todos os demais. Vejo-o fartando-se sob um carvalho, refrigerando-se no primeiro riacho, encontrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto e, assim, satisfazendo a todas as suas necessidades.
(...)
Habituados, desde a infância, às intempéries da atmosfera e ao rigor das estações, experimentados na fadiga e forçados a defender, nus e sem armas, a vida e a prole contras as outras bestas ferozes ou a elas escapar correndo, os homens adquirem um temperamento robusto e quase inalterável; os filhos, trazendo para o mundo a excelente constituição de seus pais e fortificando-se pelas mesmas atividades que a produziram, adquirem, desse modo, todo o vigor de que a espécie humana é capaz. (...).
(...) [Há] indícios de que a maioria de nossos males é obra nossa e que teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza. Se ela nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é uma animal depravado.(...).
Com tão poucas fontes de males, o homem, no estado de natureza, não sente, pois, necessidade de remédios e, menos ainda, de médicos; a espécie humana não está, pois, a esse respeito, em condições piores do que todas as outras (...).
Não constituem, pois, para esses primeiros homens, nem tão grande mal, nem sobretudo, tão grande obstáculo à sua conservação, a nudez, a falta de moradia e a privação de todas as inutilidades que consideramos tão necessárias.(...) Finalmente, a menos que se suponha esses singulares e fortuitos concursos de circunstâncias dos quais falarei em seguida e que poderiam muito bem jamais ter acontecido, é claro e sem contestação possível que o primeiro a arranjar vestes e uma habitação ofereceu a si mesmo, desse modo, coisas pouco necessárias, pois tinha passado até então sem elas e também por não se poder imaginar como não poderia ele suportar, feito homem, um gênero de vida em que vivia desde a infância.
Só, desocupado e sempre próximo do perigo, o homem selvagem deve gostar de dormir e ter o sono leve, como os animais que, pensando pouco, dormem, por assim dizer, todo o tempo em que não estão pensando. Constituindo a própria conservação quase a única preocupação, as faculdades mais exercitadas deverão ser aquelas cujo objetivo principal seja o ataque e a defesa, quer para subjugar a presa, quer para defender-se de tornar-se a de um outro animal (...).
Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto de tudo quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de liberdade, o que faz com que o animal não possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem dela se afaste freqüentemente em seu prejuízo. É assim que um pombo morre de fome perto de uma vasilha cheia das melhores carnes, e um gato sobre uma porção de frutas ou de grãos, embora ambos pudessem nutrir-se com os alimentos que desdenham, se procurassem experimentá-lo; é assim que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes ocasionam a febre e a morte, porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala.
Todo animal tem idéias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas idéias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade. (...) Não é, pois, tanto o entendimento quanto a qualidade de agente livre possuída pelo homem que constitui, entre os animais, a distinção específica daquele. A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma (...).
Mas, ainda quanto as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem por um instante de causar discussão sobre a diferença entre o homem e o animal, haveria uma outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo. Tristes de nós se fossemos forçados a convir que essa faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todas as desgraças do homem; que é ela que o tira à força de tempo dessa condição originária na qual ele passaria dias tranqüilos e inocentes: que é ela que, fazendo desabrochar com os séculos suas luzes e seus erros, seus vícios e suas virtudes, o torna, com o tempo, o tirano de si mesmo e da natureza.
Os únicos bens que [o homem em estado de natureza] conhece no universo são a alimentação, uma fêmea e repouso; os únicos males que teme, a dor e a fome. (...)
Mas, sem recorrer aos testemunhos incertos da história, quem não verá que tudo parece afastar do homem selvagem a tentação e os meios de deixar de ser selvagem? Sua imaginação nada lhe descreve, o coração nada lhe pede. Suas módicas necessidades encontram-se com tanta facilidade ao alcance da mão e encontra-se ele tão longe do grau de conhecimento necessário para desejar alcançar outras maiores que não pode ter previdência, nem curiosidade. O espetáculo da natureza, por muito familiar, torna-se-lhe indiferente (...); não possui espírito para espantar-se com as maiores maravilhas e não é nele que se deve procurar a filosofia de que o homem tem necessidade para saber observar por uma vez o que sempre viu. Sua alma, que por nada é agitada, entrega-se unicamente ao sentimento da existência atual sem qualquer idéia de futuro, ainda que próximo, e seus projetos, limitados como suas vistas, dificilmente se estendem até o fim do dia.
(...) Vê-se o pouco cuidado que teve a natureza ao reunir os homens por meio de necessidades mútuas e ao facilitar-lhes o uso da palavra, como preparou mal sua sociabilidade e como pôs pouco de si mesma em tudo que fizeram para estabelecer seus laços. Com efeito, é impossível imaginar por que, nesse estado primitivo, o homem sentiria mais necessidade de um outro homem do que um macaco ou lobo de seu semelhante; ou ainda – uma vez supondo-se essa necessidade -, qual o motivo que poderia levar o outro a atendê-lo; ou, finalmente, neste último caso, como poderiam estabelecer condições entre si. Sei que incessantemente nos repetem que nada teria sido tão miserável quanto o homem neste estado; e, se é verdade, como creio tê-lo provado, que só depois de muitos séculos poderia sentir ele o desejo e a oportunidade de sair dessa condição, tal acusação fora de fazer-se à natureza e não àquele assim constituído por ela.
(...)
Concluamos que, errando pelas florestas, sem indústrias, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligação, sem qualquer necessidade de seus semelhantes, bem como sem qualquer desejo de prejudicá-los, talvez sem sequer reconhecer alguns deles individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, não possuía senão os sentimentos e as luzes próprias desse estado, no qual só sentia suas verdadeiras necessidades, só olhava aquilo que acreditava ter interesse de ver, não fazendo sua inteligência maiores progressos que sua vaidade. Se por acaso descobria alguma coisa, era tanto mais incapaz de comunicá-la quanto nem mesmo reconhecia os próprios filhos. A arte perecia com o inventor. Então não havia nem educação, nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto, desenrolavam-se os séculos com toda a grosseria das primeiras épocas; a espécie já era velha e o homem continuava sempre criança.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens.
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Um comentário:
professor, quando o senhor vai postar os textos de apoio para os seminarios? necessito deles para a elabolaração do mesmo. por favor poste o mais rapido possivel.
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